O Espetáculo

Li em algum lugar que o amor não tem face, se esconde pelas sombras e tateia a escuridão em busca da luz. Que o amor não se troca não se conjuga e nem se ama. Que o amor é o amor a nada, feliz e forte em si mesmo. Mas acima de qualquer sentimento estamos nós, perdidos em nossa confusa passagem.

Aconteceu numa tarde de julho, na pequena cidade onde vivem meus tios, que ainda insistem em sobreviver da agricultura, lutando incessantemente contra as pragas da natureza e contra os homens de má fé.

Um dia meu pai cansado do pouco que tinha e do trabalho físico extenuante, saiu deliberadamente para rua e, metodicamente surrou,

quase que até a morte, um revendedor de cacau que havia enriquecido ás custas do trabalho duro dos agricultores da região. Depois disso meu pai, já com a morte anunciada, pegou sua mulher e filhos e fugiu para uma cidade portuária, cujo nome não

mencionarei, fazendo fortuna no ramo aduaneiro, trocando o calor insuportável da lida no campo pelo cheiro de maresia e pela ferrugem nos arquivos do escritório.

Apesar da distância entre a roça e o mar a união da família ainda se manteve forte e a comunicação era feita através de cartas, guardadas por meu pai nas grandes gavetas do arquivo, e, se juntadas todas em uma única pilha, chegavam a alcançar mais da metade da parede do escritório. Em algumas datas comemorativas quase toda a família costumava se reunir em nossa casa e contar velhas e novas histórias da terra quente e sem lei da qual saímos. Como os negócios de meu pai progrediram num ritmo incrivelmente rápido pude receber esmerada educação, freqüentando os melhores

colégios e adquirindo relativa cultura. Bem diferente dos meus primos, que embora fossem uns matutos sem instrução, eram inteligentes e possuíam um senso da realidade bem mais apurado do que qualquer colega da faculdade. É interessante dizer que graças à ajuda de meu pai meus tios puderam melhorar de vida, e os tempos de nadar contra a correnteza ficaram para trás.

A fazenda cresceu, os negócios progrediram, porém meus tios nunca deixaram de reclamar: as pragas e a baixa nos preços eram sempre motivos de preocupação. O cacau adocicou a vida das tias velhas cozinhando delicias no fogão de lenha enquanto as fofocas substituíram a lida no campo. Era uma tarde de agosto e enquanto o carro passava pelas ruas esburacadas da cidade eu observava cada detalhe da minha terra natal. Desde o dia em que meu pai surrou o revendedor de cacau nunca mais nenhum de nós havia voltado lá, eu pelo comodismo, meu pai pelas más lembranças que o lugar lhe

causava. Meu primo dirigia o carro e dizia algo que eu não escutava. Pude ver a venda do Norberto, intacta, a receber os peões com sanduíches de mortadela no fim do dia. Vi a casa das putas e, presumi ser uma casa de putas pelos trajes das mulheres que riam e falavam alto nas janelas, na época em que sai de lá eu não imaginava o que era. Vi a pracinha tomada pelo mato e a igreja cada vez mais descascada, absorvida pelo tempo.

Mas o que mais me chamava a atenção era a estrada de barro, a poeira subindo, o cheiro de um passado inerte que eu, naquele momento, inutilmente tentava resgatar.

Também vi ao longe o que parecia ser um circo, homens fixavam grandes pregos no chão enquanto outros estendiam uma grande lona vermelha e amarela rodeada por estrelas azuis e, no centro da lona, bem acima da porta de entrada, uma estrela bem maior do que as outras, e meu maior espanto foi quando vi o desenho dentro da estrela, uma gaivota, uma gaivota dentro de uma estrela azul, por uma incrível coincidência o mesmo símbolo da empresa de meu pai.

Chegando a casa da fazenda mal pude descansar. Meus primos queriam me mostrar a plantação, os animais, a bela cachoeira de águas mornas. Acostumados com o trabalho físico, dificilmente meus primos se cansariam com tal divertimento, já eu, que passava a maior parte do tempo trancado no escritório cansava só de me imaginar caminhando pelo mato embaixo do sol quente, isso para mim, definitivamente, não é diversão. Gosto da cidade, do asfalto, da poluição, gosto de ver as pessoas apressadas pelas ruas, gosto

de ver os bêbados irritando as velhinhas quando voltam da feira.

Meu primo, lembrando-se do circo que a essas horas já deveria estar montado e em pleno funcionamento, sugeriu que fossemos até lá dar uma olhada, já que circo não era coisa comum na cidade, e nesse momento pensei comigo que a curiosidade dos matutos devia ser o ganha pão desses pequenos circos que rodam o interior do país.

No trajeto entre a fazenda e o circo fiquei tentando extrair da memória da forma mais clara possível o símbolo que havia na entrada do circo, porém minha mente projetava essa imagem de forma nebulosa e obscura, como se meu inconsciente não admitisse qualquer outra ligação, além de parentescos, entre meu mundo e toda a pobreza que formava o universo daquele lugar.

Na entrada do circo pude observar com calma o símbolo, e conclui que ele era quase uma cópia exata do símbolo da empresa da minha família, a única diferença era que a gaivota do circo possuía dois pequeninos olhos, enquanto que a minha era o desenho de uma gaivota completamente branca. Entramos no circo e a simplicidade do lugar não me espantou, as arquibancadas velhas e sem tinta combinavam com o chão de barro, os últimos raios de sol da tarde entravam pelos muitos buracos da lona, e qualquer vento forte tornaria o espetáculo bem mais interessante caso eu estivesse do lado de fora do circo. Ao toque de uma trombeta entraram no picadeiro três atores de mímica, sendo um deles uma mulher, que me chamou a atenção de imediato.

A leveza de seus movimentos me lembravam o balançar de galhos ao sopro da mais leve brisa, a expressão em seus olhos era como um rio caudaloso e cheio de mistérios. A totalidade de sua beleza anulava por completo toda a miséria em volta, e isso me trazia uma paz inexplicável... É difícil descrever o que eu sentia; O talento, a arte, a poesia do momento me transportaram para um universo único, e a palavra amor me veio a mente como um tiro vai ao peito. Ela era como uma orquídea a quebrar o asfalto e me fazer beijar de novo o antigo chão empoeirado.

O espetáculo terminou e ela saiu de cabeça baixa do picadeiro, indo para os fundos do circo. E eu, na excitação do momento, saltei da arquibancada quase que hipnotizado, e a segui pelo circo adentro esbarrando em um palhaço triste e derrubando a maleta do mágico. A perdi de vista por um instante, e quando a vi ela estava de costas, voltada para um galão de água, lavando a cabeça e retirando a maquiagem. Fiquei quieto, esperando ela terminar, e esse momento mágico parecia uma pintura.

Mas quando ela sentiu a minha presença e virou-se de frente para mim, meus olhos se contraíram e minha alma também, a pintura de seu rosto se desfez junto com a do meu momento, pude ver em seu rosto os traços da dor, da fome e do sofrimento, os olhos eram tristes, a pele cicatrizada, e no rosto nem um sinal da alegria do picadeiro, nossas máscaras caíram juntas e era como se toda água daquele galão caísse gelada sobre mim.

Sai desnorteado daquele local tentando achar a saída do circo, minha mente estava confusa e eu me sentia sujo. Enquanto andava apressado para a porta de saída eu olhava apenas para o chão, e senti que o chão também me olhava. Sai do circo esbarrando nas

pessoas que estavam na porta e quando olhei para trás meus olhos me guiaram para o símbolo do circo, olhei fixamente para estrela e depois para os olhos da gaivota, e me dei conta de que eu não sabia para onde ir.

FIM

Lucio Lobo
Enviado por Lucio Lobo em 14/12/2010
Código do texto: T2671837
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