As duas faces.

Seu Genaro era daqueles homens brigados com a vida, dizia que já vivera demais e que já estava na hora de deixar esse sofrimento que se tornara a sua vida nos últimos anos. Os antigos amigos tentavam reanimá-lo, chamavam-no para conversar, para jogar um pouco de baralho ou qualquer outro jogo que o agradasse, mas toda vez ele replicava:

- Ora! E eu lá sou homem de ficar de papo com velho? Me deixem na minha rede e vão se iludir pensando que isso é vida!

Muitas vezes tentou matar-se, mas sempre dizia que não tinha coragem, primeiro por medo de ir ao inferno e segundo por estar esperando a liberação de certa herança que receberia de um irmão de Minas que falecera há poucos meses. “É para dar um funeral e um epitáfio dignos de um homem como eu” bradava sempre que algum vizinho mais abusado insinuava que ele só não morria por causa da bendita herança.

E eis que ela chegou, com um certo atraso, mas certo é que chegou.

Alcides (era assim que se chamava o irmão de Seu Genaro) deixara ao irmão uma quantia razoável, o suficiente para comprar uma boa casa, um bom carro e tudo mais que se quisesse de bom, pois Genaro, sendo irmão único do mesmo, tornara-se praticamente herdeiro universal da bela quantia, isso porque uma pequena parte da herança havia sido deixada para uma certa entidade social de Minas.

Genaro sem dúvida surpreendeu-se com tanto dinheiro, imaginava que receberia uma miséria, pois havia anos que não tinha qualquer contato com o irmão e nem se quer chorara a morte deste.

- Eu tenho é inveja, o desgraçado conseguiu morrer antes de mim! e saía praguejando para quem quisesse ouvir.

Porém agora, com as apólices e os números das contas dos bancos nas mãos, ele teve um pouco de remorso, pensou muitas e muitas vezes e chegou a conclusão de que Alcides merecia todas as lágrimas do mundo.

No dia seguinte ao da posse da herança, Genaro já nem se quer lembrava dos pensamentos do dia anterior; o bom leitor deve estar pensando “que crápula, sem dúvida não tem coração”, e eu, simples narrador dessa história curiosa, peço a ti, leitor, que perdoe o nosso velho, já não tem a memória de um jovem e seus pensamentos agora divagam em dilemas decerto mais importantes.

- Como vou gastar? Em que empregar tanto dinheiro? era o que indagava o velho a caminhar sozinho pela calçada.

Demorou somente algumas horas para chegar à resposta. “É isso! Vou me mudar, essa casa e esses vizinhos já estão velhos demais, ah! claro! Também preciso de um novo vestuário e também vou poder fazer aquela cirurgia que o meu maldito plano de saúde não cobria..” e assim ia Genaro, com um lápis e um papel na mão, escrevendo tudo que pensava, pois isto, sem dúvida, ele não queria e nem podia esquecer.

Os vizinhos estranharam quando um Genaro alegre e, porque não dizer, afetuoso disse-lhes que ia se mudar, que havia se cansado de tanto barulho, que precisava descansar e que desejava um fim de vida melhor. Pois é leitor! O mundo dá voltas sim, mas confesso que nesse caso, tive a sensação de que ele deu uma bela pirueta.

Lá ia Genaro, com seu 74 anos, todo pomposo e todo prosa, vestido com seu novos ternos, freqüentando os melhores restaurantes, vivendo em um estupendo apartamento(só não era de frente para o mar, porque ele não quis, dizia que não ia agüentar conviver com a ralé que freqüenta as praias de hoje) que acomodaria tranqüilamente uma família completa.

Infelizmente Genaro ainda sofria da memória e nunca mais se lembrou dos velhos vizinhos e muito menos lembrou-se de economizar o dinheiro que tanta alegria conseguira lhe causar.

Quanto à morte? Essa Genaro conseguira driblar, só não conseguira a esquecer completamente, porque de vez em quando a danada lhe dava umas pontadas no coração.

Após os primeiros meses de bem-aventurança, começaram a aumentar as dores no peito, era a morte que já se cansava de bater, bater e não conseguir entrar.

Genaro procurou médicos e mais médicos, queria saber se havia cura para o que estava sentindo, “eu pago qualquer coisa”, clamava.

Vieram exames, operações, meses de sofrimento, e lá se ia embora o dinheiro do nosso esquecido velho, ou será velho esquecido? creio que a segunda indagação é a melhor, pois nenhum vizinho, é, nenhum daqueles velhos vizinhos veio saber do Seu Genaro.

O pobre homem? Ou talvez homem pobre? Creio agora que as duas colocações estão correta, pobre homem, por ser agora um coitado, homem pobre pois já havia gasto o que tinha e o que não tinha para viver um pouco mais.

E em fim ela venceu, a morte, a tirana que vem pra mostrar que a vida não é tão bela. Seu Genaro faleceu numa tarde ensolarada de novembro, um domingo, um dia que para tantos foi mais um dia e nada mais.

Morreu só, morreu pobre, morreu pensando que podia viver mais, eis aí a ironia de um destino afoito.

No enterro, dava-se para contar os presentes, entre eles via-se um daqueles vizinhos abusados, com quem tanto Seu Genaro brigara.

A verdade é que morreu como um indigente, arrumou-se apenas um túmulo em um cemitério mais afastado, um caixão de madeira simples (doado pelo hospital), algumas flores desbotadas, e só.

Meu pobre velho! Com certeza merecias muitas outras homenagens, sinto que não tenhas tido teu digno funeral e teu digno epitáfio, mas se te consola, este eu te deixo: “Aqui jaz um homem que não soube viver e nem soube morrer, e por não saber, merece todas as minhas condolências”.

TMB
Enviado por TMB em 19/10/2006
Código do texto: T268239