O penúltimo brasileiro honesto

Januário, mineiro integral, metro e tal, cabelos raros e pele de jacaré, há muito remetia à prosa de Barreto. Vivia a plagiar personagem ideocrata, idiotizado por ataques piegas e sandices de brasilidade: Quixote, que se tornara, dos trópicos.

Seu temperamento interiorano não deixava de contrastar com arroubos de impertinência, caso lhe negassem a autoria de façanhas gloriosas em prol da soberania nacional.

Acreditava ser a reencarnação de Quaresma: “Alguém precisa redescobrir o Brasil!” – policarpeava aos quatro ventos, esperando que suas palavras encontrassem ecos.

Contam várias histórias – afirmam ser verdadeiras – protagonizadas por Januário:

- Pára! Pára!

- O que é isso, Januário?

- Larga esse gato, agora. Ninguém vai levá-lo daqui.

- Mas ele está enlouquecido...

- Enlouquecidos estão vocês. O coitado não fez nada...

- Ele atacou a garotinha...

- Se não o largarem, eu é que vou atacar vocês.

O gato, segundo dizem, era de rua, sem pedigree, bonito e bravo como o povo que ele representava em sua luta diária pela sobrevivência. A menina boazinha atingira-o com um chute, tal se faz cotidianamente com esse mesmo povo.

Isso era demais para ele. Fora seu primeiro ato heróico em defesa das causas tupiniquins.

De outra feita, postou-se frente a um caminhão de entulho, que era carregado com móveis e utensílios de uma senhora idosa. Januário tentava impedir que seus parcos pertences fossem levados. Apanhou muito. Chorou muito. Não pela dor dos socos e pontapés recebidos, mas por não poder livrá-la do desespero e da vergonha de envelhecer sem dignidade num país desmemoriado.

Na Faculdade de Filosofia, ministrava aulas de Latim, cujo quorum inflamava-se com seus discursos ab imo corde, propondo uma divisão de poder sine qua non ad populum.

Seus superiores o ridicularizavam; os alunos o idolatravam, visionários sem causa, entretanto adeptos de seu estilo arrojado e algo louco. Alguns mais animados até o seguiam em suas desventuras.

Pretendiam convencê-lo a uma aventura eleitoral, mas encontravam veemente resistência de seu mito personificado:

- Vocês acham que eu tenho preço? – irritava-se.

Não acreditava nos políticos, apesar de politizado. Todos eram corruptíveis, e ele jamais se venderia. Ainda assim insistiam. Seus argumentos eram consistentes: ‘Como mudar a ordem política, se você se esconde?” – questionavam.

Manteve-se irredutível. Não se entregaria às tentações do sistema. Preferia ser pedra, jamais telhado.

Fundou a Organização Não-Governamental Amigos da Pátria. A ONG propunha uma educação igualitária, mas sua atuação não encontrou ressonância na sociedade, haja vista que sua gente, o povo que ele amava e por quem lutava, pouco se importava com métodos ou linguagens. Queriam feijão, arroz e cerveja gelada, além de um carnavalzinho em agosto, mês agourento e sem feriado.

Uma noite, ao sair de casa para uma reunião na Amigos da Pátria, passou por uma blitz – como essas, que sabemos anunciadas – e foi parado por um policial:

- Documentos...

Esquecera-os na sede da ONG.

- Vamos apreender o veículo.

Não haveria problema. Amanhã o recuperaria.

- O senhor podia deixar uma cervejinha...

Indignou-se, discursou, ofendeu, ameaçou...

(...)

E manhã seguinte, nascida cinza como a pressentir o pior, na manchete principal de um jornal da cidade, podia-se ler: “Professor morre em confronto com a polícia”. “Segundo versão dos que o pararam na Blitz, o professor, ao ser abordado, mostrou-se muito nervoso e agressivo ‘e tentou evadir-se do local’. Na perseguição que se seguiu, foi alvejado nove vezes e morreu.”

Ainda segundo o porta-voz que leu o comunicado dos policiais, em seu veículo foram encontrados dois revólveres calibre 38 e farta propaganda anticívica...”