ALGO NO REINO DAS PALAVRAS - um conto didático

ALGO NO REINO DAS PALAVRAS - UM CONTO DIDÁTICO

Havia, subreptícia ou subliminarmente, uma inquietante inquietação no pacato reino das palavras. Tudo ali já tinha sido criado à semelhança do Admirável Mundo Novo, quer dizer, cada um com sua finalidade e função e pronto. Então, por que essa nebulosidade no ar?!

Nada declarado, ninguém abria a boca, porém o clima de tensão pairava perigoso e dramático. Um dos reis, o SUBSTANTIVO, já tinha mandado fazer uma investigação entre seus súditos, mas constatou que entre eles tudo estava na mais perfeita ordem. O ARTIGO continuava feliz na sua vidinha, os PRONOMES, com a empáfia de um embaixador que representava seu próprio rei, satisfeitíssimos da vida também. Entre os NUMERAIS, nada de estranho, continuavam no seu afã de numerar, ordenar, dividir e multiplicar.

Talvez, pensou o rei SUBSTANTIVO, houvesse alguma revolta entre os ADJETIVOS! Não, também não havia, os adjetivos são o equilíbrio e a harmonia entre a felicidade e a infelicidade.

Em outras palavras, o feudo do rei SUBSTANTIVO estava em paz. Cada um na sua. E como havia um contato direto entre seu feudo e o do rei VERBO, através do súdito ADVÉRBIO, que tinha a liberdade de trabalhar nos dois feudos, o SUBSTANTIVO soube que lá, no feudo do VERBO, também tudo estava em paz, mesmo porque o único súdito era ele mesmo, o ADVÉRBIO, e esse estava feliz com seu duplo papel.

Ora, ora, ora, então o que estava havendo? Por que essa sensação de inquietação no ar? Seria o problema na periferia, entre aqueles elementos funcionalmente insignificantes, usados só quando se quer estabelecer relações entre palavras e orações?

Os dois reis se cotizaram e mandaram averiguar. E não é que descobriram mesmo o problema! E ele ocorria entre um ramo da periferia: as conjunções adversativas versus as conjunções concessivas.

E como a coisa ocorria na periferia, a isoladinha dali, a interjeição, é que instigava a disputa entre os dois tipos de conjunções, fazendo-as, infrutiferamente, lutar para ter a preferência de emprego pelos usuários da língua.

O MAS capitaneava as adversativas; o EMBORA capitaneava as concessivas. Estas, julgando-se mais elegantes, diziam que o seu emprego dava mais nobreza ao texto. Enfatizavam que uma frase como “Embora todos tivessem lutado bravamente, a derrota foi inevitável” era muito mais bonita e sonora do que “Todos lutaram bravamente, mas foram derrotados”! E as INTERJEIÇÕES, que nunca têm nada a perder, instigavam: Oh! é isso aí!

Todavia o MAS não se dava por vencido. Refutava dizendo que a frase em que ele fora usado era mais objetiva, mais direta. Que não era a elegância nem a nobreza que importavam, e sim a objetividade. E sua brava legião, representada por PORÉM, CONTUDO, TODAVIA, ENTRETANTO, gritava em apoio uníssono. E vinha a reação imediata das outras concessivas, AINDA QUE, POSTO QUE, MESMO QUE, cada uma formada por dois componentes.

E essa “anomalia” provocava risos nas adversativas, que conseguiam dizer a mesma coisa sem precisar de nenhuma ajuda, bastava um componente só: PORÉM, CONTUDO, ENTRETANTO, TODAVIA, sem contar o capitão, o elegante e discreto MAS, curto e objetivo.

E a disputa não cessava, embora ainda sem pancadaria. As palavras, felizmente, nunca puderam ser equiparadas às torcidas organizadas de futebol, essas também muito apoiadas pelas INTERJEIÇÕES.

Entre as PREPOSIÇÕES tudo estava mais tranqüilo, ainda que as espevitadas APESAR DE e A DESPEITO DE dessem todo seu apoio às concessivas, das quais se sentiam mais próximas, julgando que assim tinham a mesma elegância. Às vezes, as prepotentezinhas se julgavam até superior às co-irmãs concessivas, porque achavam que uma oração com o verbo no infinitivo, mais universal, era mais nobre do que uma com o verbo finito. Esse era de uso corriqueiro, mas o infinitivo... Sim, concluíam, sim, somos as mais nobres de todas. E com essa crença viviam felicíssimas consigo mesmas!

Enquanto isso, a batalha verbal entre os dois tipos de conjunções não parava, sem que nenhuma cedesse um milímetro de sua posição. Os dois reis, o SUBSTANTIVO e o VERBO, não podiam interferir, pois ambos necessitavam do serviço daquela periferia. Como resolver essa pendenga então? Era uma quizila sem lógica. Os próprios usuários da língua estavam inquietos, sentindo-se pressionados a usar essa ou aquela. E a discórdia ocorria num mundo em que só um ente fictício poderia intervir.

Esse lampejo de idéia acabou tendo resultado, pois a interjeição, que não tem controle sobre si mesma, se traiu e gritou: “Oh, só o narrador!”.

Ao ouvir seu nome, o NARRADOR, ser que é mil, milhão, bilhão ao mesmo tempo, prontamente atendeu e aceitou o papel de conciliador. Deveria reunir os líderes das duas facções e convencê-los de que ambos são importantes, sem qualquer hierarquia, apesar de uma língua ser considerada mais evoluída quanto maior seu nível de subordinação. Não vamos atiçar isso, senão haverá outra disputa infrutífera entre a PARATAXE e a HIPOTAXE, ou melhor, entre a coordenação e a subordinação.

O NARRADOR chamou o MAS e o EMBORA, sentaram-se, e ele começou a ponderar:

– Aonde vocês querem chegar com essa disputa? Pelo andar da carruagem, vocês dois, e seus pares, ainda terão espaço com os usuários por centenas de anos. Se assim é, por que lutar para saber quem é o mais importante?

– A interjeição me disse que sou o mais importante, que sou mais direto, sem frescura, que os usuários, em sua maioria, me preferem – disse enfático o MAS. Ao que o EMBORA refutou, irritado:

– Nada disso, embora eu seja usado pela minoria, sou empregado por aqueles que mais bem manejam a língua – disse com empáfia precon-ceituosamente social, não se dando por vencido e convicto de que era realmente mais importante.

O NARRADOR viu que, se deixasse pelos dois capitães, nada resolveria. Apelou então para o óbvio: a explicação de quando um era usado em detrimento do outro, e vice-versa, e falou firme, embora com a elegância que um narrador sabe ter quando quer.

– Acho que vocês não estão alcançando o papel real de cada um. Vocês ligam argumentos opostos e nenhum é mais importante que o outro, apenas são usados em situações diferentes, embora, por indicar argumentos contrários, muito próximas.

O EMBORA sorriu satisfeito e imperceptivelmente, pois tinha sido usado na argumentação do NARRADOR, sem que o MAS sequer tivesse percebido!

O MAS e o EMBORA se entreolharam e aguardaram a complementação da explicação, que veio em seguida.

– Você, MAS, é usado quando o argumento apresentado é mais forte na oração por você iniciada. Só que você tem posição fixa no texto, jamais pode começar a frase. Vamos ver um exemplo: “Os jogadores brasileiros lutaram bravamente, MAS foram derrotados”. Veja, nessa frase, os argumentos se opõem, porém prevaleceu o iniciado por você, MAS. E repare que não se poderia iniciar a frase com você: “MAS foram derrotados, os jogadores brasileiros lutaram bravamente”. Isso seria impossível. E falando isso, virou-se para o outro oponente e bradou enfático:

– Já você, EMBORA, também inicia argumento oposto ao da oração anterior, ou posterior, já que você pode mudar de posição, mas a idéia preponderante nunca está na oração por você iniciada, mas sim na outra, na principal. Vejamos o mesmo exemplo usado com o seu colega MAS: “Embora os jogadores brasileiros tivessem lutado bravamente, foram derrotados”. ‘Tá vendo, a idéia mais forte está em “foram derrotados” e não no argumento que você iniciou. E você pode iniciar a frase ou não, ao contrário do seu colega MAS, que nunca pode. Por isso, essa frase também poderia vir assim: “Os brasileiros foram derrotados, embora tivessem lutado bravamente”. Será que agora está tudo claro entre vocês? Ambos são muito importantes, indispensáveis, é uma questão de preferência do usuário.

E falando assim, esperou a reação dos dois, que se deram as mãos e tudo voltou ao normal no reino das palavras. Porém, o MAS saiu sorrindo por dentro, certo de que, no fundo, tinha vencido mesmo assim, porque ele iniciava a oração em que o argumento de oposição prevalecia, ao contrário do EMBORA. Já este se julgou vencedor, porque podia ter mobilidade na frase. Ahahahaha!

A interjeição, que nada mais podia fazer para manter a disputa entre as duas facções, ficou tentadinha a usar uma expressão bem popular e tremendamente resumitiva do velho “dar de ombro”, mas se conteve. E a paz voltou a reinar.

Maio de 2006 – revisto em 04/1/11.

Leo Ricino

Leo Ricino
Enviado por Leo Ricino em 04/01/2011
Código do texto: T2708426