Linhas paralelas

lá estava ela. de jaleco branco em meio a solidão e ao concreto do planalto central. andava distraída. óculos escuros grandes, cigarro na mão. olhei de longe. o cabelo preto pintado. insólita. ela mesmo. na porta do conjunto nacional. ela me viu também. ca-ra-lho! mexeu os lábios sem falar, costume dela, e andou na minha direção depressa e me abraçou. estava um calor desgraçado, daqueles que precedem chuvas em janeiro. eu de terno e gravata e ela de jaleco. mas a gente se abraça sem ligar pra muita coisa. a gente na verdade nunca ligou pra muita coisa e sempre foi diferente de todo mundo, quando estávamos juntos.

eu tenho a mania malvada de transformar mulheres bonitas em minhas personagens, isso eu já falei. eu não as perdôo mesmo. ela mudou muito, crescemos, hã? mas por mais que a gente mude, a nossa essência permanece. desde crianças temos definido dentro de nós aquilo que seremos. o que muda é que, depois de um tempo, a gente se conhece melhor. mas a essência é sempre a mesma. era a mesma yasmim, mas de jaleco branco. logo deduzi que era médica, como ela sempre quis ser.

- medicina? perguntei sem hesitar, já sorrindo, quase certo da resposta. não sabia que você estava aqui no Brasil de novo. tinha mil coisas pra perguntar.

- não... cientista! bióloga... medicina sempre foi o sonho né, mas teria que estudar mil anos no cursinho pra conseguir... vim de lá transferida pra unb e estamos aí. e você? concurso? tá onde? caralho...! quanto tempo!

deu mais um trago no camel. sempre camel. e isso não é coisa de personagem que a gente inventa, é dela mesmo. sempre a mesma marca de cigarro desde os treze anos. mas sem o lápis forte no olho, sem as roupas pretas que usávamos, com um ar um pouco mais sério. quase sem maquiagem. quando a vi pela primeira vez sem maquiagem tive a revelação quase divina de que ela era infinitamente mais sexy sem maquiagem. bem, ela continuava. era uma mulher consolidada, ainda gostosa, ainda provocando em mim os mesmos fetiches de antes. será se ela ainda tinha aquele piercing...

- eu não. sabe como é né, ia ter que estudar mil anos no cursinho! estou trabalhando de economista ali, e apontei o prédio, mas não é concurso não. na verdade estou pensando em sair de Brasília esse ano...

ela apertou os olhos. ela sempre fez isso também, acho que ela sempre precisou de óculos mas nunca quis usar. que saudade daquela apertadinha de olhos tentando me focalizar.

- mas?

agora ela me perderia, apesar dela não estar ligando muito (será?), eu é que iria embora.

- Brasília já encheu o saco. vou voltar pra minha terra, lá tem mais oportunidades que aqui. eu sempre quis ir embora daqui, lembra? pois é, agora eu formo. se a gente não arriscar uma vez na vida a gente não arrisca nunca, é, é isso sabe, vou arriscar.

- ca-ra-lho. ce tá certo mesmo sabia, a gente tem que arriscar. mas pra você vai dar tudo certo. sempre deu. você sempre pôde matar aula tranquilo no final do ano. já tá formando... caralho

- e você o ano inteiro, né? interrompi rindo. ela sorriu de volta e apagou o cigarro pisando nele, mas antes cruzando as pernas, ao invés de apagar com o pé que estava na frente do cigarro. ela tem uma bela cruzada de pernas, mas faz tudo do jeito mais difícil. sempre. essência de yasmim. parece perfume.

- ou, então tá, muito bom te ver! quanto teeeeeeeeeempo nossa nem acredito!

- a gente sempre se encontra não é? e é sempre assim, do nada. é bom que seja assim. você imprevisível, parece sonho, disse, com a palma da mão em seu pescoço. foi intencional a pegada no pescoço antes de abraçar e despedir. ela arrepiou, eu senti. intencionalmente. foi como a primeira vez. aquela primeira vez.

ela foi embora, andando depressa pra fazer não sei o quê ou qual experimento ou tubo de ensaio ou coletar espécies em extinção. a menina ativista que sempre foi. yasmim, meio pirâmide do planalto central. meio anjo árabe, meio concubina. acendi um carlton. tentava fumar camel, mas sempre achei muito forte.

"linhas paralelas têm o mesmo coeficiente angular, mas nunca se encontrarão no espaço", era o que líamos nas primeiras aulas de matemática do primeiro ano. acho que agora entendi. era isso mesmo, agora entendi. sempre entendi. sempre entendi, yasmim.