Fragmento de Memórias do Biralatas

Quis a fortuna que eu nascesse e vivesse uma infância canina venturosa. Os meus progenitores descendiam de uma linhagem de puros Boxers e eram entre si parentes afastados. Comigo haveriam de nascer outros três cachorrinhos e assim tive mais duas irmãs e um irmão, sobre os quais pouco ou nada vim a saber.

Minha mãe era uma cadela elegante, bonita, de pêlo camurça acastanhado. Tinha na região inferior do pescoço, e descendo abdómen abaixo até ao início das patas anteriores, uma vistosa pelugem branca que contrastava harmoniosa com o camurça do corpo. De resto também as patas eram revestidas de pêlos brancos.

Meu pai, musculado, porte altivo, corpo equilibrado e linhas perfeitas para a raça, apresentava-se como um imponente animal. O seu pêlo, também camurça era ligeiramente mais carregado que o de mãe cadela.

Viemos ao cãomundo num asseado ninho preparado para o efeito e ao qual os duas patas têm o hábito de apelidar de maternidade, deslocado para os fundos do canil, propriedade de uns abastados e reputados criadores de animais de companhia lá para os lados da Malveira.

Minha mãe foi cuidadosamente acompanhada nos trabalhos de parto por dois veterinários, ele mais velho e experiente, ela uma estagiária a dar os primeiros passos na carreira. O ninho onde cadela minha mãe pariu e que fora antecipadamente diligenciado para acolher a nossa chegada ao cãomundo encontrava-se desinfectado e o inferior meticulosamente revestido com mantas aparentemente grosseiras mas que na prática eram bastante macias. Tal facto resultava da necessidade de diminuir quanto possível a absorção dos líquidos derramados durante os trabalhos de parto.

Ditou o destino que eu fosse o segundo cachorrinho da ninhada a tomar contacto com o ar fresco das serranias da Malveira. Nenhuma recordação guardo do que devo ter sentido com o choque, mas a julgar pelo que sei hoje, a sensação de desconforto e de frio deve-me ter feito detestar a chegada ao cãomundo.

A estagiária foi-nos asseando dos líquidos do parto um após o outro com extremosos e carinhosos cuidados, seguida pelo olhar atento do colega. Parecíamos uns débeis mas graciosos bonecos, corpinhos enfezados, escassos de pelugem, os quatro cor de café com muito leite, olhitos fechados, focinhos cerzidos em pregas, gemendo cada qual a nossa insatisfação pelo desconforto que sentíamos ao enfrentar irreversivelmente o impacto da aragem fresca que bafejou a nossa natividade naquela precoce manhã de primavera.

O parto de mãe cadela decorreu sem incidentes. Só o derrame excepcional e exagerado dos líquidos surpreendeu os clínicos, apressando a transferência de todos para um outro ninho, este revestido de mantas novas e esterilizadas, bastante confortável e colocado num recanto mais abrigado da maternidade do canil.

Pressenti no meu imaginário raciocínio de recém-nascido que os veterinários se divertiam e sentiam satisfeitos ao colocarem mãe cadela, enfraquecida mas orgulhosa da sua maternidade, no seu novo ninho. Em seguida aconchegaram-nos à sua barriga, colados cada qual às suas avolumadas tetas inchadas de leite. Remexendo-nos uns por cima dos outros lá nos fomos acomodando à forma das tetinas de mãe cadela, desajeitados e rabugentos, mas sôfregos de alimento.

Passamos os nossos primeiros dias protegidos pela ternura e as atenções de mãe cadela, lambendo-nos e acarinhando-nos, talvez tentando amenizar o desconforto que imaginava pudéssemos sentir por termos sido expropriados do seu maternal ventre. Periodicamente também os clínicos nos vinham observar, a estagiária com mais frequência, pegando por vezes em cada um de nós e mirando-nos minuciosamente o corpo, enquanto mãe cadela seguia atenta cada uma destas tarefas, mantendo-se em guarda num sinal de advertência dando a entender que não permitiria a mínima distracção ou desagravo ao nosso trato.

Aos poucos fomos ganhando confiança nos nossos corpos e descobrindo algumas astúcias para melhor nos acomodarmos junto das tetas de mãe cadela. Fazíamos de cada momento de sôfregas mamadas uma farra, ainda de olhos fechados, orientados pela intuição e pela desmesurada gulodice.

São quase nulas, como é natural, as recordações que guardo dessa época de cachorro bebé. Deveria ter uma dúzia de dias quando abri pela primeira vez os olhitos e, ainda confundido com a imprecisão, me espantei com a luz, as formas e as cores do mundo e certamente com uma percepção bastante divergente daquela que os duas patas perfilham.

Não sei precisar qual foi a minha reacção a esse embate com o mundo das formas mas o certo é que, dado o à-vontade com que mais tarde passei a movimentar-me, não me devo ter sentido atemorizado nem constrangido pelo que me iria esperar no futuro.

Foi curto o tempo passado em cãofamília. Ao fim de um número aproximado de amanheceres ao qual os humanos chamam de duas semanas separaram-me definitiva e irremediavelmente do seio familiar.

Essa tragédia aconteceu numa tarde amena e soalheira do primeiro mês de Primavera. As flores e os ainda tenros rebentos despontavam titubeantes nos arbustos e nas ramadas jovens das árvores com um frenesim desmedido de vida e de cor. Odores adocicados trazidos pelos ventos agora menos agrestes, e até em algumas tardes, já mornos, afloravam-me as narinas.

Foi numa dessas tardes que o dono do canil me acomodou numa alcofa, a qual tive o privilégio de estrear, e me meteu nas traseiras de um desses pequenotes caixotes andantes, espalhafatosamente decorado com o nome, as actividades e outras pintalguices gráficas alusivas ao canil.

Caixote andante rolou pelas estradas acidentadas da serra, em seguida por outras mais planas e de melhor piso, atravessou uma estranha construção fruto do engenho megalómano dos duas patas e que me custou a suportar, tendo a sensação, a cada salto que as rodas davam nas juntas de dilatação, de querer vomitar, aterrorizado com a eventualidade de todo aquele monte de ferros, cimento e alcatrão ruir e canito ir águas mansas do Tejo abaixo parar ao cãoparaíso, destino provável dos cachorros inocentes.

Infundados os receios e um quarto de hora passado o suplício o mono volume rolante precipitava-se a vencer o que faltava do percurso a caminho de uma pequena quinta entre a vila de Alcochete e o Montijo.

O ruminante mecânico estancou a cavalgada diante de um portão largo, alto, intransponível por cerrado e arredio dos olhares indiscretos devido aos seus varões de ferro serem recobertos a chapa laminada pintada de verde-escuro. De ambos os lados, um mais curto do que o outro, e ao longo de umas boas cinquentenas de trotes de cão adulto, a quinta era vedada por um muro de cimento branco que impedia enxergar o interior e só olhando para o alto se viam as copas de uma ou outra árvore mais vizinha.

Pachorrentamente, fruto de ser bem entroncado, o meu tratador esticou o punho dos freios do ruminante mecânico até que um derradeiro estalido seco o advertiu de que a besta estava bem segura. Procurou uns papéis no porta-luvas, releu na passada um ou outro sem grande atenção, juntou os que entendeu por bem serem necessários e abriu a porta do roncador. No passeio, esticando as pernas e os braços gordos, como que a ajudar alguns ossos a distenderem-se, duas patas tratador e ainda meu proprietário, espreguiçou-se. Dirigiu-se para o lado do portão onde repousava no interior de um recôncavo de latão dourado um punho misto de campainha e sineta, segurou-o e puxou-o vigorosamente umas duas vezes.

Moisés Salgado