A noite dos dinossauros

Em muitos meses, aquele foi o primeiro dia que Elza não se queixara de dores ao acordar. O dia amanheceu esplendoroso e pujante, quase que obrigando cada criatura viva a perfilar-se sob o sol. Alfredo pensou que poderia deixar Elza sozinha durante aquele dia, pois a protetora mão de Deus sobre tudo pairava, e nada de mal poderia acontecer-lhe. Elza estava muito doente, mas sentia-se bem.

Ressuscitar os mortos? A ideia parecia extravagante, mas antes que de fato a vida sepultasse para sempre os seus dias, resolveu agir. Telefonaria para Samuel:

Alô!

Casanova?

Cassius Clay!

Ao ser chamado daquela maneira, Alfredo sentiu a esquerda enrijecer. Abria e fechava os dedos, o punho feito pedra.

Encontraram-se uma hora após se falarem. Casanova era viúvo, morava com a filha mais velha. A sorte dele era que os judeus não costumam deixar à mingua seus velhos.

Era um prédio com pintura descascada, algumas janelas encobertas por lençóis rasgados. Com alguma aflição, entraram no elevador e subiram até o décimo. Apartamento 1001. A campainha mais parecia o ronrom de uma gata velha. A porta se abriu.

Ora se não o grande Augusto. Olhos de faca!

Olhos de faca deu passagem para os dois entrarem. Revistas e cinzas de cigarro espalhadas pelo tapete. Na mesa de centro, um copo vazio e meia garrafa de uísque. Olhos de faca encheu o copo e virou tudo, num só gole.

O desayuno de um velho lobo. Aceitam?

Os dois negacearam. Olhos de faca serviu-se de mais uma dose.

Pelo visto não anda mais comendo empregadinhas por aqui, não é mesmo Olhos de faca? – os dois riam enquanto Olhos de faca fazia jus à alcunha. O semblante endurecido, as duas sobrancelhonas negras se beijando, apesar de grisalha a cabeleira revoltosa. Relaxou, afinal, e riu também.

Contei para vocês que o meu rebento esteve aqui? – Olhos de faca engravidara a empregada da casa dos pais quando tinha ainda quinze anos. A família dele prometeu sustentar a mulher e a criança com a condição de que não aparecessem mais. Cumpriram a promessa por vinte anos. – Cinquenta anos o sujeito, mas está bem acabado. Disse que trabalha fazendo frete. Cinco filhos, quatro mulheres e um garotinho recém-nascido, do segundo casamento. As quatro já deram cria, vejam só que merda... bisavô. Ele veio aqui para me dizer que a mãe morreu há alguns anos. Fez bem. Já estou cuidando do testamento, ele herdará tudo que tenho.

Tudo o que, Olhos de faca? Esse apartamento velho?

E algumas caixas de malte legítimo. Pelo menos nisso saiu ao pai! – Olhos de faca ria enquanto os amigos se despediam. Marcaram sair às nove da noite. Como antigamente. Juntos, os implacáveis.

Alfredo – Cassius Clay – parou na porta da casa de Casanova e buzinou levemente. O outro saiu de maneira esbaforida, a filha querendo saber maiores detalhes sobre aquela repentina saída do velho, aonde iria arrumado daquele jeito.

O papai não demora, filhinha. Shalon!

Entrou no carro e pediu que o outro desse logo a partida. Mas Cassius Clay não continha o riso.

Que roupa é essa, Casanova? Suspensório, camisa xadrez e boina?

Oras. Dia desses vi um sujeito na tv que cantava usando uma roupa exatamente igual a essa. Vamos, saia logo daqui!

Dessa vez não precisaram subir. Olhos de faca os esperava na porta do prédio. Usava uma jaqueta de couro desbotada, insígnia dos Hells Angels às costas.

Está um pouco apertada, mas ainda entra. – de um dos bolsos retirou sua eterna companheira, uma pequena garrafa de aço escovado. – Nada como um bom trago para espantar o frio.

Para onde vamos, afinal? – perguntou Casanova.

Estive pensando no Belfast. Tenho um amigo que toca na blues band deles. – sugeriu Olhos de faca. Estava com muito frio, a garrafinha já esvaziara.

Nada que lembrasse o pub dos áureos tempos. No seu lugar haviam construído uma igreja. Com desgosto, Olhos de faca olhava a procissão daquelas pessoas com bíblias nas mãos, entrando e sentando nas fileiras de cadeiras de plástico, enquanto à frente um homem gritava coisas ininteligíveis, ao que todos em coro respondiam: Aleluia!

Blasfêmia! Malditos sejam! – vaticinava Olhos de faca enquanto um pequeno grupo de crentes vinha em sua direção, empunhando suas bíblias salvadoras.

Belfast, hein, Olhos de faca! Qual foi a última vez que veio aqui?

Acho que... dois anos é tanto tempo assim? Vamos descer a rua, preciso abastecer.

Entraram no carro e seguiram pela rua. Pararam num bar que tinha uma música ao vivo.

Música de bicha. Garçom, um uísque!

Tequila e limão! – Cassius Clay.

Coca-cola light! – Casanova.

Olhos de faca e Cassius entreolharam-se.

Que porra é essa, Casanova? Coca light?

Não posso com o álcool... e minha filha disse que...

O garçom veio com as bebidas. Olhos de faca:

Garçom, pode trazer uma garrafa lacrada!

Cassius Clay estava na quinta dose de tequila. Olhos de faca seguia firme, a garrafa perto da metade. Casanova pediu nova Coca light com limão.

Garçom, por favor, traga uma caipirinha para o rapaz aqui! – interveio Olhos de faca.

E seguiram a segunda, a terceira, a quarta, a quinta... Casanova tinha o rosto vermelho, os olhos marejados, parecia querer chorar. Seus olhos se encontraram com os de Cassius por um instante. Foi a centelha que faltava para fazer despertar o sentimento que estava engasgado em seu peito.

Você, Cassius Clay, punhos de aço, boxeador de merda... você sempre teve inveja de mim. Eu sempre soube disso. Eu sempre tive a mulher que quis, mas você nunca se conformou. Mas somente uma eu amei, e você sabia porque te contei uma vez... e pra se vingar, você a roubou de mim, você se casou com ela. Eu devia ter me casado com Elza, e não você, seu cretino!

Não acha que essa é uma revelação um tanto quanto tardia, Casanova? – Cassius Clay olhava para aquela cara de sofrimento que só um judeu sabe fazer. Revelaria sobre a grave doença de Elza, que a matava um pouco todos os dias? Justo que era, não desembainhou a espada do rancor. Que o outro ficasse com a imagem singela da garota que conhecera na juventude, em vez da figura decrépita em que se transformara sua mulher.

Um rapaz da mesa ao lado levantou-se. Veio em direção aos três, concentrando-se em Olhos de faca.

Perdeu o medo da morte, tio? Ficar encarando a mulher dos outros?

Cassius Clay abria e fechava nervosamente os dedos da esquerda. Casanova dormia, embriagado. Olhos de faca olhou com calma para o amigo que àquela altura já tinha desenhado em sua mente a trajetória do soco fatal.

Fica tranquilo, Cassius – e encarou o jovem desafiadoramente – E esse copo cheio de gelo, garotão? Joga isso fora. Quero ver se você é tão bom quanto diz. Eu te dou a vantagem de duas doses, e aposto o carro do meu amigo aqui que você não chega ao fim dessa garrafa. – bateu com força no rótulo dourado do uísque.

Sentaram-se frente a frente. Olhos de faca iniciou com duas doses. Enquanto o rapaz bebia, Olhos de faca concentrava seu semblante endurecido no rapaz, que mais parecia uma criança assustada. Cinco, dez, quinze doses. O rapaz colocou a cabeça para o lado e vomitou. Àquela altura, seus amigos já ovacionavam Olhos de faca, enquanto dois deles cuidavam de levar o rapaz para o banheiro.

Crianças, meu caro! Como o nosso amigo aí prostrado. Releve o que ele te disse hoje.

Certamente que sim. Vejo que os anos transformaram seu fígado numa esponja. Como consegue beber tanto e não travar?

O segredo é que não tenho mais fígado! – sorriu para o amigo. – Será que você ainda consegue segurar um baixo?

Como não? Sempre exercitei minhas mãos.

Olha lá. Os caras pararam de tocar, mas deixaram os instrumentos. Vamos acordar o Casanova. Creio que ele ainda manda ver na batera!

Todos os olhares se voltaram para o palco onde aqueles senhores de cabelo branco estavam. A gaita de Olhos de faca rangia um blues nervoso. Cassius Clay acompanhava no baixo, enquanto a bateria de Casanova tentava fazer a marcação. Após alguns minutos, tocava como se tivesse vinte anos.

Uma das antigas: Country Roads! – gritou Olhos de faca para a platéia cada vez maior. Tocava com todo vigor, ao som dos bends que faziam pulsar as grossas veias do seu pescoço. As mãos tremiam na técnica do wah-wah, que consistia em fazer vibrarem as notas da gaita. A cada apresentação, palmas mais fortes.

Olhos de faca ainda fez uma última apresentação solo, tocando um blues lamurioso, o sad man blues. A apresentação estava no auge, não tinha mais espaço no bar. Resolveram então ir embora. Naquela altura da vida, sabiam que o mais prudente é deixar a festa quando esta chega à sua melhor parte.

Os três, lado a lado, os implacáveis. Bem sabiam que aquela era a última vez que se encontrariam. Mesmo assim não houve despedidas, apenas concordância num último olhar. A frigidez noturna os envolvia. O céu estava negro, mas por detrás das nuvens ainda brilhavam algumas estrelas.

* * *

Goiânia, agosto de 2005