Papirodouto, o Burocrata.

Quando nasceu seu pai não teve dúvida: Papirodouto seria seu nome, em honra aos grandes doutos homens da humanidade, sequiosos pelo cumprimento de seus deveres.

Logo seu pai o embalou num manto de seda e o banhou com a mais pura água da fonte do Rio Grande, proclamando-o, assim, um grande homem.

Tão logo começou a andar, deram-lhe um terninho branco, todo engomadinho, com gravata de seda italiana e sapatinhos alvos lustrosos. Era um pacotinho!

Estudou nos melhores colégios particulares. Era um loquaz sabichão, sempre pronto a intervir em qualquer assunto quando sua sapiência era instada.

Aos quatorze anos ingressou como guardinha no Foro da Comarca de Poeirópolis, como auxiliar escriturário. Era um cumpridor de seus afazeres, os quais sempre mantinha a mais estrita presteza. Algo realmente a zelar.

Papirodoutos era de fato um homem de respeito, cumpridor dos comandos do sistema e um maquinário dos “dias úteis”.

Não pensava que não fosse amparado pelos pudores, legislações e bons costumes da sociedade.

Casou-se pela primeira vez aos dezenove anos, com uma moça que insistia em lhe ouvir.

Era difícil, mas a moçoila de quinze anos achava Papirodouto um gênio, até descobrir que era praticamente impossível conviver com ele entre quatro paredes; “algo que nem Sartre imaginaria em seu “inferno”, dizia ao advogado, no momento do pedido de separação.

Papirodouto não se deixou de rogado, foi logo soltando suas verborréias vãs contra Deus e o diabo, dizendo que houve incompatibilidades de gênios, e que sua ex-mulher era uma pusilânime, não cumprindo com suas obrigações matrimoniais. Nisso, perante o juiz, a mulher, num ataque histérico, arrancou o sapato de salto alto e o lançou na direção de Papirodouto, que ficou dois meses com uma marca de salto bem no centro da testa, porém mantendo a dignidade.

A vida prosseguiu e novo matrimônio Papirodouto contraiu. Nova vítima em suas garras caiu...

Uma mulher mais velha, sóbria e cônscia de suas opiniões. Esse durou menos, três meses de discussões ferrenhas e ofensas guturais, até que mais uma vez a vida conjugal se tornara impossível e insalubre, derrocando em mais um divórcio.

Mais uma vez Papirodouto tingiu os cabelos naquela manhã de domingo, aparando as arestas do bigode e preparando-se para ir à missa e mais uma semana de labor pela frente. Não se importava com nada, pois tinha o controle e a consciência de sua vida. Estava certo em tudo, e ninguém tirava isso dele. Estava certo!

Com o passar dos tempos fora se tornando mais burocrata e seguidor das normas e formalismos, a ponto de perpetrar absurdos dentro da repartição, como tomar a iniciativa de atos e fatos que competiam apenas ao magistrado, que, por sua vez, ia assinando e consentindo com tudo que Papirodouto, com seu largo tempo de funcionalismo, ia redigindo.

Passados mais de quarenta anos desde seu ingresso nos maquinismos do estado, Papirodouto sequer cogitava se aposentar. Queria trabalhar até o estertor, até quando agüentar, se possível morrer ali, “atrapalhando o trânsito”.

Cada vez mais armazenava clipes, grampos e cuidava para que os copos descartáveis fossem usados corretamente, para que não saíssem dois ou mais. Era um curador do Estado, repugnado pela maioria que com ele convivia, mas que aceitavam por acharem-no quase que uma entidade estatal. Ninguém mexia com Papirodouto...

Até que, numa certa tarde, um colegiado de funcionários públicos, magistrados e membros da OAB resolveram conceder-lhe honra máxima de um membro do monstro sistêmico: seria embalsamado vivo e posto defronte a sala da Justiça, como mártir de um tempo que não deve mais voltar...

Ele sorriu um sorriso largo e aceitou de prontidão, ajeitando sua gravatinha de seda e abrindo os braços feito o Cristo Redentor...

Savok Onaitsirk, 09.02.11.

Cristiano Covas
Enviado por Cristiano Covas em 10/02/2011
Código do texto: T2783625
Copyright © 2011. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.