Quartos de Pensão

Acabara de ouvir o inquilino do lado chegar.

Alcides estava acabrunhado. Quando ficava assim, gostava de pensar o próprio nome como uma corruptela de El Cid; isso o fazia sentir algum orgulho e recuperar um pouco de auto-estima. O artifício, desta vez, não funcionara minimamente; sentia-se realmente muito mal.

Era fim de tarde, começo de noite. O ar parado, febril. Um mormaço quente e abafado cansava a respiração.

Alcides estivera durante arrastados minutos observando, talvez, o último raio de sol que refletia no pequeno espelho, em cima da pia, onde ele, dia sim, dia não, se escanhoava. Seu olhar insistia em procurar, como que magnetizado, o reflexo balançando entre o assoalho e o rodapé; cada vez mais mirrado, como se colocasse um ponto final no dia. Chegou a pensar que aquela claridade já opaca servia apenas para definir melhor o contorno das sombras.

Sentia-se deprimido.

Estava atirado à cama estreita, meio corpo fora dela e a cabeça desconfortavelmente voltada para poder ver o que ainda restava daquela luz que ia morrendo. Se pudesse morreria também assim. Melhor, se deixaria morrer, catatônico, imóvil; ao contário do ponto luminoso que, agonizando, ainda se arrastava.

A idéia da morte foi ficando mais e mais recorrente em sua cabeça.

Entorpecido daquela posição incômoda em que se deixara ficar, pensamentos embaralhados, não sabia sequer discernir se os passos inquietos no quarto ao lado, para lá e para cá, eram reais ou imaginários.

Foi o ruído do disparo que o fez levantar-se num sobressalto assustado.

Quando conseguiu se recompor e abrir a porta, já estava juntando gente no quarto do vizinho.

Vira-o contadas vezes: "- Bom dia. - Boa tarde. - Como vai?" Nunca, pensou, um ficara para ouvir a resposta do outro. Tão próximos e, ao mesmo tempo, tão distantes.

Agora o alvoroço era total com a vizinhança toda querendo saber o que é que tinha acontecido. Observou que havia gente que nem da pensão era ou, pelo menos, ele nunca vira antes por ali. Espiando por cima do ombro de um fulano Alcides viu, ainda uma vez, o homem do quarto vinte e dois. Por baixo do lençol branco com que o haviam coberto, uma mancha de sangue se formara espessa e só não era maior porque as gretas do assoalho a iam drenando.

Alcides resolveu sair. Ia andar um pouco, respirar o ar da noite. Possivelmente tomasse um café expresso ou um conhaque. Mais tarde, quando o sossego voltasse a reinar por ali, retornaria para o seu quarto, sua cama e seus fantasmas.

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Depois de teclar o ponto final naquela última frase, Hilário sentiu que um leve rubor lhe subia pela face.

- Porca miséria! – exclamou. Há tantos anos vivendo do ofício de escrever e era a primeira vez que servia aos seus leitores um cardápio com a morte como entrada. Tentou desculpar-se: antes dele muitos outros tinham enfiado defuntos logo no começo de suas estórias. Lembrou-se de Hitchcock, o insuperável mestre do suspense. Disse de si para consigo:

- Tirante todos os cadáveres, sua filmografia iria morrer à míngua. Pensou de novo seu próprio pensamento e riu com gosto. A morte matando a morte! Sim senhor.

Perdoem-me se isso não lhes parece nada engraçado, mas a verdade é que a Hilário pareceu, digamos, hilariante. Aliás, era típico dele encontrar graça no trágico, rir no drama. Ainda que o drama e a tragédia impregnassem a sua própria vida. Achava inclusive superior poder rir de si mesmo. Afinal já ia para o sexto mês que tivera de se mudar para aquele minúsculo quarto de pensão. Fora despejado. Depois de mais de quatro anos de pagamentos pontuais de aluguel, Hilário, repentinamente, perdera a vontade de escrever. Não encontrava assunto nem inspiração; coisas pelas quais seu editor estava acostumado a pagar-lhe. E ele, ao aluguel. Por conseqüência, seu senhorio, prático como todos os proprietários costumam ser, despejou-o. Agora lá estava ele metido naquele quarto miserável, mal ventilado e mal iluminado e, pior, com um único banheiro para os quatro inquilinos do primeiro andar.

Esmagou o resto do cigarro no cinzeiro e, num repente, sentiu como se houvesse cometido um grande, um imperdoável erro. Lembrou-se que sequer tinha retocado no seu personagem os rudimentos do caráter e já o havia abandonado numa inocente incursão noturna em busca de um café, talvez um conhaque. Temendo pelo pior, resolveu sair imediatamente no seu encalço. E ia atravessando a porta da frente da pensão, mas, como a noite esfriava, voltou para vestir um agasalho. No espaldar da cadeira da escrivaninha logo encontrou o único que lhe restara: um velho casaco de couro desbotado.

Poucas coisas conseguira juntar para que habitassem com ele aquele quarto; tinha sido posto na rua quase que só com a roupa do corpo, como se diz.

Finalmente saiu; só voltaria tarde da noite.

Hilário vagou pelas ruas tentando identificar seu personagem dentre os homens que bebiam nos bares. Em todos via alguma semelhança com o Alcides – o seu Alcides – contudo, nenhum preenchia todos os quesitos. Uns pareciam-lhe velhos demais, outros, excessivamente jovens. Deixou-se prender a atenção por um em especial. Meia idade, roupa surrada e olhar distante, estava só, sentado a uma mezinha de lata, vermelha, dessas de propaganda de cerveja ou refrigerante. Bebericava com jeito cuidadoso aquilo que a Hilário pareceu ser um copo de conhaque.

Aproximou-se um pouco para vê-lo melhor naquele canto mal iluminado do bar. Soube então que não era ele; não era Alcides. Encostada na parede ao lado da cadeira, a muleta revelou-lhe que o homem era um mutilado: faltava-lhe uma perna. Consultou suas economias no bolso do casaco, foi até o balcão e pediu, confiante, uma cerveja. Depois sentou-se à mesa ao lado do aleijado. Dali podia observar melhor e, quem sabe, traçar mentalmente o desenho exato da perna ausente naquele homem.

Acendeu um cigarro e viu a fumaça azulada dissolver-se à sua volta. O garçom veio trazer-lhe a cerveja. Encheu o copo fazendo crescer a espuma. Levou o copo à boca, sentiu o odor forte da cerveja e sorveu um gole demorado.

- Como, diabos, o homem tinha perdido a perna?

E ao formular a pergunta a si mesmo, deu-se conta de que precisava continuar com sua busca. A noite avançava e era bem possível que Alcides estivesse por aí afora, perdido, indefeso.

Terminou a cerveja e preparou-se para sair. Por descuido deu um violento esbarrão na cadeira do mutilado que tentou sofregamente agarrar-se à muleta, num gesto patético e inútil. Na queda, ao espalmar a mão na mesa para se apoiar, fez com que ela se fechasse e o atingisse em cheio na boca. Ei-lo agora estatelado no chão, um filete de sangue escorrendo pelo canto da boca entreaberta e dois dentes descolados da dentadura.

Hilário, de pé, vendo o homem no chão, o susto estampado no rosto, olhos esbugalhados,teve um aperto no estômago e, por um momento, sentiu-se confortavelmente generoso. Como a dor persistisse mais aguda, lembrou-se que não havia comido nada desde o almoço e, logo que alguns homens vieram em auxílio do aleijado, foi saindo sem alarde e sem pressa, dissimuladamente. Como não tivera o propósito de arremessar o homem ao chão, sentia-se livre de qualquer sentimento de culpa, racionalizou Hilário. Assim, adiou sua busca e voltou para a pensão.

Àquela hora o banheiro comum estava disponível; era bom aproveitar. Depois pensava dirigir-se à cozinha, no térreo. Sabia que na fruteira – que costumava ficar coberta com um pano de prato – por certo acharia bananas; com sorte, algumas maçãs. E lá foi ele, pé ante pé. Praticamente o tanto de tempo que levou planejando seu pequeno furto, levou para consumá-lo e contabilizar os resultados: duas bananas e uma maçã. Ali mesmo comeu as bananas e jogou as cascas fora. O receio de ser visto fez com que o trajeto de volta lhe parecesse mais longo.

Uma vez no quarto respirou aliviado. Olhou para a maçã com os olhos acesos de cobiça, como se admirasse uma gema preciosa e de inestimável valor. Esfregou-a na manga do casaco dando-lhe lustro. Por entre duas gelosias quebradas da veneziana o poste da frente insinuava uma leve claridade. Levantou a maçã à altura dos olhos: como era bonito aquele brilho trêmulo. Devorou a fruta propositadamente devagar, saboreando cada mordida.

Ainda sentado em frente à velha Remington emudecida, acomodou os restos da maçã no cinzeiro, entre cinzas e pontas de cigarro. Depois, levantou-se, desfez-se das roupas e se enfiou debaixo dos lençóis. O sono não iria demorar e podia até ser que o sonho lhe propiciasse reencontrar seu personagem.

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Há horas já que todas as luzes da casa tinham sido apagadas quando Alcides voltou.

Caminhava sem pressa, pressentindo que o velório do vizinho suicida iria prolongar-se e que, pela noite adentro, continuaria a ser incomodado pelos rumores das conversas através da fina parede. Já na entrada estavam formadas as rodinhas de diz-que-diz. Uns falavam do morto: - “jovem ainda.” - “você viu que loucura, homem?” - “será que virão parentes?” Outros contavam piadas, riam alto.

Dona Genoveva chamou-os às falas:

- Onde já se viu! Mas isto é um desrespeito para com o falecido.

E, dirigindo-se a Alcides que entrava nesse exato momento, invocou-lhe tomar seu partido:

- O senhor não acha, seu Alcides, que quando a gente vai desta para melhor merece o respeito dos que ficam?

Alcides balançou a cabeça num gesto que podia significar qualquer coisa. Até mesmo que concordasse com a dona da pensão. Aliás, foi como a mulher entendeu.

- Boa noite, seu Alcides.

- Boa noite, dona Genoveva.

Disse isso por cortesia; estava cansado de saber que aquela noite seria uma droga para ele e que a da velhota tampouco seria das melhores.

Ao entrar viu que todos os arranjos já haviam sido feitos. Bem no meio da sala de jantar, em cima da mesa, o morto parecia cuidadosamente preparado para a derradeira viagem. Alguém o barbeara e lavara. Depois deveriam tê-lo vestido e acomodado naquele caixão de madeira escura. Raciocinou que a cor combinava com a situação e com o ambiente, de tal forma que apenas a um olhar atento como o seu não passaria despercebido o fato de que se tratava de um modelo dos mais baratos. Ocorreu-lhe que em casos assim a polícia costuma demorar a liberação do corpo. Estranhou que tudo tivesse sido feito de modo tão rápido e adequado.

Antes de subir para o seu quarto olhou o cadáver ainda uma vez. Era tal a serenidade da fisionomia do morto que se não fosse pelos dois pequenos tufos de algodão entalados nas narinas, poderia se pensar que estivesse dormindo.

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Hilário tinha perdido a conta do número de vezes que relera aquelas últimas páginas. A cada nova leitura o texto lhe parecia menos seu. Sentia ímpetos de suprimir-lhe alguns trechos, reescrever outros; aqui substituir uma palavra, ali uma frase inteira. Continha-se, contudo. Era como se fosse interferir em algo que não lhe pertencia. Sem saber por que lembrou-se de certos poetas clássicos que costumavam atribuir às musas algumas de suas mais fecundas criações. E, quanto à inspiração, não tinham quaisquer pudores de autoria; ofereciam-se como o instrumento de que os deuses eventualmente se servissem para manifestar sua arte. Com um estranho sorriso pendurado no canto do lábio, Hilário colocou papel na Remington.

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O enterro consumiu quase toda a manhã. E tinha sido até bem concorrido, uma vez que o suicida era um homem solitário e que, afora os escassos conhecidos da pensão e da vizinhança, parecia não ter parentes ou amigos. Alcides acompanhou o sepultamento em pé, ao lado de dona Genoveva, durante todo o tempo. Voltaram juntos para a pensão quase que sem trocar palavra. A Alcides pareceu que a mulher estava sinceramente abalada com o acontecido.

Pararam em frente da pensão.

- É a vida, dona Genoveva, é a vida - disse Alcides mecanicamente.

- Pois é, seu Alcides, o falecido parecia ser muito boa pessoa - e emendou: - com certeza era um bom homem. Sabia que ele era um escritor conhecido e com vários livros publicados?

- Não sabia, não. Mas me lembro de muitas vezes tê-lo ouvido bater à máquina. Eu raramente o via. E quando isso acontecia ele sempre me deixava a impressão de ser um homem só e triste.

– Pois o senhor tem razão, seu Alcides. Não me lembro de uma vez sequer ter visto esse homem rir. Parece que ultimamente andava meio deprimido... O senhor o conhecia bem pouco, não é mesmo?

- Só de vista. Trocávamos cumprimentos quando nos víamos. Bom dia, boa tarde. Será que chove? Nada além disso. Para ser honesto, dona Genoveva, nem o nome dele eu sei.

- Hilário, seu Alcides. O nome dele era Hilário.

luca barbabianca
Enviado por luca barbabianca em 11/02/2011
Reeditado em 12/02/2011
Código do texto: T2785340
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