Conto de um rei sem trono

O rei acordou num solavanco imprevisto. Decerto o sedativo não lhe fora aplicado na dose satisfatória a um sono completo. Os olhos experimentavam a cegueira providenciada pelo negrume do quarto ainda adormecido. Sentado sobre a cama, as mãos aflitas cingiam os joelhos num movimento de corpo inteiro.

O silêncio aparentemente inabalável o ensurdecia. Mergulhava-o em temor. Onde estariam todos? Onde estaria sua coroa? Examinava cada canto do dormitório, desde o luxo submisso dos tapetes orientais até a arrogância do lustre no teto. Os pés enfim puderam sentir a frieza das lajotas do assoalho imediato à cama, anterior à proteção de qualquer carpete. Logo vieram-lhe os inesperados soluços, quebrando-se o até então absoluto repouso.

Abraçado a si mesmo, tremia, já completamente dominado pela inquietação, procurando nos próprios braços o calor disperso naquele âmbito insólito. Sem demora, desfez, num gesto de ousadia, porém deliberado, a cruz acolhedora do corpo e conduziu os braços inseguros até a moringa. Levando-a à boca, a água lhe desceu morna pela garganta. Aquecido, cerrou os olhos e sorriu, satisfeito. Veio-lhe a imagem do mar, das ondas, do magnífico porto que levava seu nome, da frota real que estava para chegar, transbordante de artigos adoravelmente supérfluos.

Calçou então os chinelos e depositou sobre a cabeça, agora mais tranqüila, a coroa incrustada de pedras translúcidas, que sobre a cômoda estava, e pôs-se a vaguear pelo palácio.

Com uma das mãos para trás, caminhava vasto, soberbo, pisando para fora, enquanto com a outra alisava a barba venerável. Embora a escuridão ainda estivesse ali instalada, o monarca avançava com desenvoltura. Conhecia cada centímetro daquela perfeita obra de arquitetura como à palma de cada uma de suas vigorosas mãos. E não poderia ser de outra maneira. Afinal, um rei sem intimidade com seu próprio castelo não merece ser detentor de tanto poder.

A uma olhada pela janela, gradeada em nome da sua própria segurança – um incômodo desnecessário, graças àquele seu conselheiro bajulador, sempre visando ao bem de seu estimado soberano, além de uns cobres a mais –, lembrou-se da última reunião que tivera com seus assessores, encarregados de lhe trazer periodicamente novidades acerca do reino e resultados de pesquisas de popularidade junto a seus súditos.

– Fala-se muito em Vossa Majestade lá fora. A ânsia por sua recuperação, seguida de uma visita aos campos, é inefável. Mandaram-lhe inclusive este bolo caseiro, como esperança de uma breve melhora.

Breve melhora?! Recuperação?! Mas que diabos! Por que esses inúteis insistem nessa enfermidade absurda da Coroa, se esta se sente tão bem? Parecem um bando de papagaios, sempre a repetir a mesma história! Já está cansado de dizer que seu sangue azul é invulnerável a qualquer mazela e também de demitir aqueles imprestáveis. Mas eles sempre voltam! Que coisa! Pelo menos desta vez não vieram de mãos abanando. Há tempos não lhe traziam nada tão bom quanto aquele bolo, extraordinariamente saboroso. Pena que comera apenas uma fatia, indo todo o restante para os camareiros do palácio. Também, coitados, trabalham tanto. Merecem levar, de vez em quando, à boca qualquer coisa que não seja a comida repugnante que a cozinha real sabe preparar. Se, como Senhor daquilo tudo, ainda a tragava, somente o fazia para aproximar-se de seus súditos e ganhar-lhes confiança. Ah, como algumas criancinhas nos braços e uns apertos de mão fortalecem a figura de um chefe de Estado. E os tolos nem percebem nada. Eles nunca percebem nada.

Novamente com sede, apanhou o vaso de barro e dirigiu-se até o altar, para que pudesse lubrificar a garganta sobre o conforto imponente de um trono. Ah, mas este ali não estava. A nascente claridade permitiu-lhe lembrar que encomendara um novo trono, maior, mais compatível com sua própria grandeza, e os carpinteiros reais levaram o antigo para utilizá-lo como modelo. Tudo bem, em qualquer lugar que escolhesse para pousar, desde que dentro das fronteiras daquele edifício suntuoso, encontraria luxo em excesso. Recostando-se à parede acolchoada, com revestimento singular confeccionado a partir de tecidos indianos e penas de pavão – essas coisas do Oriente –, deixou-se deslizar, até o chão.

A água desta vez veio mais fria, refrescante até. Encolhido, tentava resistir à teimosia das pálpebras, que lhe caíam pesadas. Caminhar por aquelas salas magistrais dá uma certa canseira às vezes. E, na oscilação entre a imagem imóvel do limitado compartimento e as múltiplas facetas que costumam apresentar os sonhos, a cabeça finalmente tombou, exausta, sobre o ombro. As pernas permaneciam estiradas, e a mão, precocemente rendida, já havia emborcado a garrafa, derramando o que sobrara da água.

Até que, por detrás das montanhas que guardavam o reino, surgiu o Sol. Logo foram-se desenhando harmonicamente fios dourados através da janela, esquecida aberta. Era hora de o palácio acordar. O monarca abriu os olhos, e, com eles, abriram-se os grandes portões da frente.

Surgiram então os homens de uniforme branco, que, como em todas as manhãs, dali o levariam para o jardim, onde se encontraria com os outros reis, rainhas, duques e papas.

Igor Miná
Enviado por Igor Miná em 06/11/2006
Reeditado em 06/11/2006
Código do texto: T283335