Exílio no mar

Ainda ontem escrevia o nome dela na praia deserta, como já o fazia com regularidade há algum tempo, num verdadeiro trabalho de Penélope. Não tinha trégua, tão logo traçava o seu nome, vinha o mar implicante com suas ondas provocantes e tudo apagava.

Sua ira tornava-se cada vez maior diante de sua própria impotência. Dirigia imprecações a Netuno para que enviasse castigo ao implacável mar que não fazia a menor questão de respeitar e preservar o nome daquela que fora sua razão de viver.

Os moradores do lugar, simples pescadores, já não davam atenção a seus desatinos. No princípio algumas crianças faziam graça, debochando de suas intermináveis cantigas com o nome dela e seu compulsivo propósito de escrever o seu nome na branca areia da praia deserta, mas os pequenos, com o tempo, foram vencidos pela ineficácia de infrutíferas zombarias e desistiram. Até mesmo um cão vadio, que por algum tempo o acompanhava em seu perambular, até então fiel e subserviente, havia desistido de sua companhia.

*****

Jamais poderia imaginar que tudo começaria a partir de uma simples reunião do diretório acadêmico da faculdade. Não cabia em si por ter sido aprovado no vestibular para a faculdade federal de Direito e iniciava o curso com grande empolgação, o que é tão normal aos deslumbrados calouros. Nem poderia supor que o simples fato de assistir a um debate caloroso entre candidatos à renovação da diretoria, implicaria em se submeter, depois, aos mais imprevistos acontecimentos, pois naqueles dias sombrios, qualquer reunião de jovens estudantes, por mais simples que fosse, era motivo de patrulhamentos e perseguições, com ferozes sanções e castigos num futuro muito próximo, pois tais reuniões eram vistas como atos de rebeldia e conspiração ao que diziam ser “O Poder Constituído”.

A vida, muitas vezes, reserva algumas surpresas, e foi assim que ele viu seu nome ser incluído em uma das chapas concorrentes à nova diretoria. No princípio ficou relutante em aceitar, mas por insistência dos demais, aceitou. Finda a votação, contados os votos, sua chapa foi vitoriosa com quase unanimidade de votos. Em conseqüência viu-se eleito como tesoureiro da nova Diretoria.

Assim, passou a participar de constantes reuniões, como aquela no fatídico dia, em que eram tratados assuntos de interesses acadêmicos juntamente com assuntos políticos que, por imposição, não eram permitidos por aqueles que procuravam afastar os jovens questionadores do estado de recessão em que se encontrava o país. A situação era de alerta redobrado, pois a repressão havia estourado um aparelho onde funcionava uma bem montada gráfica clandestina, bem próxima de onde estavam.

Quando se deram conta, a faculdade estava cercada pelo Exército. Tarde demais para empreenderem fuga. Os alunos em coro gritavam em provocação: - “Morte aos tiranos ditadores” – E os soldados reagiam explodindo bombas e soltando os cães sobre eles, que corriam e se atropelavam. Finalmente, foram presos e tiveram seus braços feridos por algemas, mas mesmo assim insistiam em gritar: - “Viva a liberdade, abaixo a ditadura!”.

Todos foram recolhidos e jogados no fundo de um camburão, junto com outros presos, e o veículo partiu em disparada. Ele, porém, foi colocado no banco traseiro de um fusquinha, algemado, encapuzado, levado para um destino que lhe era totalmente desconhecido. E o medo foi tomando conta de suas entranhas.

Quando chegaram, conduziram-no a uma sala precariamente iluminada e fizeram-no sentar-se em uma cadeira, sempre algemado e encapuzado. Passados alguns minutos de total silêncio, ouviu uma suave voz, em falso aconselhamento: - Não se iluda em querer nos enganar, nós já sabemos quem você é. Queremos apenas que confirme os nomes dos que participam das ações de desapropriação e de todos os colaboradores dos fundos para compra de armas para luta armada. Portanto, basta apenas cooperar e tudo estará resolvido e você seguirá sua vidinha sonhadora.

Ele resistia e permanecia em silêncio, o que aumentava a ira de seus captores. Iniciou-se então a seção de espancamentos brutais, choques elétricos, socos no rosto, no estômago, até ser derrubado e chutado. Quando já estava prestes a perder os sentidos, foi atendido por um enfermeiro que lhe tomou o pulso e, friamente, avaliou previamente o estado de seu corpo ferido e comunicou aos demais da equipe que a vítima se encontrava em estado precário para sobreviver e deveria ser interrompido o interrogatório por algum tempo. Mesmo contra a vontade dos algozes, foi conduzido e trancafiado em uma cela escura.

Recobrar de imediato a consciência e situar-se no tempo e no espaço era o que importava. Gritar com angústia seria um apelo perdido, uma vez que o isolamento era total, disso tinha plena certeza. Um vago sabor de sangue lhe subia à garganta. Mergulhou então a cabeça nas mãos, angustiado, incerto, sem muito entender o que se passava. – Seria sonho? Seria pesadelo? – pensou, tentando recompor-se. Olhando o abismo da escuridão a sua frente, foi tomado de uma angústia infinita na tentativa de camuflar a verdade. Levantou-se, tentou andar naquele espaço tão exíguo. Bem devagar, a passos curtos, dúbios. Em cada passo difícil ia ganhando aos pouco confiança. Insistia em caminhar a esmo, envolto naquela desesperada sensação de ainda não estar reconhecendo as coisas em derredor. - Quanto tempo já se passara? – Indagava-se.

Súbito, um estridente ruído reboou pelo espaço, seguido do som de passos que fazia quebrar o silêncio. Sentiu que se recuperava, ganhava raciocínio e despertava para realidade. Já dominava os elementos como um clarão, a verdade passava-lhe pela mente revelando a certeza da impossível comunicação com o mundo externo. A realidade trazia desespero, torturava-o, dentro da espantosa lucidez, quase tranqüila de que teria que aceitar o absurdo. E nesse conflito, o crescente terror desnorteava seu raciocínio embora levasse serenidade ao seu pensamento. Não queria negar sua responsabilidade na ação em que participara e não nutria qualquer esperança ou solução para o seu aprisionamento. Só lhe restava aguardar o momento para ser conduzido a novos interrogatórios, suplícios e torturas, mas não perderia sua honradez, nada conseguiriam em seus intentos, não era delator, jamais entregaria nomes.

*****

Viu as últimas luzes da cidade de onde partira, cada vez mais longe e desfocadas. Era como um acenar de mãos em um adeus, tão comum nos mais complexos pesadelos. Agora era o mar que ocupava todos os horizontes. Para onde olhasse lá estava o horizonte e o sol que já iniciava um novo dia, o que para ele prefigurava o nascer de uma nova vida, mesmo alheia a sua vontade. Ali, dentro daquela embarcação, achava-se perdido, aterrorizado pela sensação de fracasso e inutilidade. Sentia-se impotente naquele momento para qualquer gesto, só lhe restando aguardar pelo dia que despontava e pela possibilidade de procurar algum sentido para sua vida. Em sua cabeça só havia espaço para as negras recordações. Naquele momento sabia então que palavras ou gestos de nada lhe adiantariam. Trazia em seu corpo as marcas das violentas seções de brutalidades e rejubilava-se em não ter dito uma só palavra, permanecendo mudo mesmo quando ameaçado de violências maiores.

A princípio ficou sem saber como conseguira escapar das mãos pesadas dos que eram versados na arte da tortura. Agora, finalmente, as coisas começavam a se esclarecer em sua mente. Aproveitou-se de um eventual descuido de um dos guardas encarregados de vigiá-lo na enfermaria, onde se encontrava para breves curativos, meros paliativos para reabilitá-lo a novas seções. Correu e transpôs a porta sem que ninguém o perseguisse e viu-se diante da única saída, respirou fundo e sem hesitação pôs-se em fuga, sem olhar para trás. Na verdade, não atinava que tudo aquilo fazia parte de um ardiloso plano para facilitar-lhe a fuga com o intuito de descobrirem novos envolvidos no que chamavam atos de terrorismo. Era questão de tempo, provavelmente logo estaria reunido a outros, em algum lugar que inocentemente julgavam seguros e que, por certo, os agentes policiais não tardariam em descobrir. Esses eram os planos dos repressores, mas não aquilo que o destino lhe tinha reservado.

Assim que se viu livre, comunicou-se com seus contatos que prontamente o retiraram da cidade.

Foi levado para um refúgio secreto de onde seria transportado para uma ilha ligada ao continente apenas por embarcações com razoáveis recursos de navegação, e em épocas de ressacas e mau tempo até isso era rareado. E foi assim que naquela manhã pisou na praia pulando apressado da embarcação que o conduzira. Olhou em redor e pôs-se a questionar: - Que nova vida o esperava num pacato lugarejo povoado de pescadores com poucas histórias para contar e que ali viviam em completo isolamento do continente?

Quando chegou a seu destino, trazia pouca coisa: uma mochila jogada nas costas, com poucas mudas de roupas, e, no peito, uma incontida revolta por sentir-se exilado em seu próprio país. Bem que gostaria de ter em sua bagagem alguns livros de sua predileção, dos quais não gostava de se separar, mas fora impedido, e severamente advertido por aqueles que tinham a responsabilidade de retirá-lo de circulação da cidade onde tudo começou, por serem consideradas leituras subversivas pelos repressores, e que poderiam despertar alguma desconfiança quanto a sua identidade. Passou a morar numa das pequenas casas de frente para o mar, naquela praia deserta da ilha, onde quase todos eram simples pescadores.

Sua adaptação à nova vida foi difícil. No começo não fizera amizade com ninguém. Gostava de ficar sentado na areia olhando o horizonte, ouvindo as ondas, admirando os barcos dos pescadores parados em frente. Outras vezes permanecia à beira do cais, em total solidão, dividindo o ambiente com famintas gaivotas que voavam para o alto e mergulhavam em busca de pequenos peixes que por ali nadavam. No silêncio de sua mente, povoada do passado mais remoto, ainda lhe eram agradáveis as recordações de uma infância bem vivida. Na verdade, o que mais o afligia eram os fatos mais recentes, que cismavam em surgir em seus pensamentos como que brotando do interior de um pesadelo, onde se misturavam realidade e a fantasia de forma tão difusa. Algo se passava em seu interior, não sabia o quê. Era como se algo de dentro e de fora dele se desprendesse e se dissolvesse no espaço, algo não sabido nem preciso. Angústia somente. Profunda angústia.

À medida que o tempo passava, aos poucos, procurava impor a si mesmo certas rotinas. Encontrava-se com os pescadores à porta de um pequeno bar localizado na beira do porto onde tomava o seu café da manhã e os pescadores os seus tragos enquanto esperavam a hora de saírem em suas fainas mar à dentro, afastando-se do porto, pondo suas vidas em risco, muitas vezes enfrentando tempestades repentinas, em troca de mísero salário. Bem que gostaria de falar aos pescadores e fazê-los entender melhor os direitos que tinham depois de tantos anos, tantos riscos e trabalho, mas nunca teve coragem suficiente de tomar tal iniciativa.

Naquela manhã chegou ao porto quando o sol há muito surgira no horizonte e os pescadores já haviam partido. Estava acostumado a acordar cedo, isso nunca fora um impedimento para ele, mas naquele dia não conseguira e estava mal humorado. Fora uma noite que não pegara no sono, e nas poucas vezes em que cochilou, o passado recente lhe veio em terríveis pesadelos.

Eram mais ou menos oito e meia, ele acabara de tomar seu café da manhã, quando escutou um forte ruído de motor. Olhou para o pequeno cais e avistou uma embarcação que vinha em sua direção. Era um barco que transportava mercadorias para a ilha e que raramente trazia algum turista. O mar encontrava-se bastante agitado, dificultando a aproximação da área de desembarque. O prático trabalhava depressa na tentativa de encostar o mais próximo do porto. Com suor escorrendo pelo rosto, acenou com a mão pedindo ajuda. Ele deu uma olhada em volta para se certificar de que não havia ninguém por perto, que era o único na beira do cais, aproximou-se mais e alcançou o cabo de proa lançado pelo homem de bordo e o amarrou com vigor nas escoras de desembarque.

Assim que a prancha foi baixada, ele deparou com aquela bela criatura de cabelos ruivos que pisava com muita graça, na tentativa de manter o equilíbrio. Única passageira a bordo. Com gestos graciosos ela tentava, sem muito êxito, segurar com uma das mãos uma pequena valise e com a outra o corrimão da prancha inclinada. Uma inesperada guinada da embarcação, provocada pelas fortes ondas, fez com que se desequilibrasse e quase caísse. Ele prontamente estendeu as mãos em sua direção para ajudá-la a atingir com firmeza o cais flutuante. Ela, mesmo demonstrando desapontamento pelo incidente, agradeceu com um belo sorriso. Ele continuou olhando para ela e, do nada, abriu um sorriso que a fez menear a cabeça, voltar a sorrir e acrescentar um sonoro – olá!

Foi a primeira vez que a viu. Ela estava com os cabelos presos para o alto, dois olhos verdes que soltavam sobre os seus. A partir daquele dia, seus grandes olhos verdes o perseguiram e o seu rosto sorriria em todos os seus sonhos.

Meio sem se dar conta de que por um breve momento reteve e afagou sua mão, indagou: - Você só tem essa valise de bagagem? – Ela, já se sentindo segura, respondeu em tom de gracejo: - Onde já se viu tal milagre, uma mulher conseguir reunir todas suas necessidades numa única valise? – Logo em seguida apareceu um dos marinheiros da embarcação transportando em seu carrinho duas pesadas malas, que, se adiantando, passou à frente dos dois e seguiu em frente, rumo ao único hotel que havia naquela localidade.

Seguiram em silêncio por algum tempo, ela apoiando-se em seu braço, ele muito pouco à vontade naquele inusitado papel de acolhedor de turistas. Deu-se conta de que não havia sequer perguntado o seu nome ou indagado sobre o que viera fazer naquele fim de mundo. De repente vieram-lhe à mente inúmeras perguntas, mas não sentia qualquer coragem para inquiri-la. Ela adiantou-se, como se adivinhasse o que se passava pela sua cabeça: - Pesquisas arqueológicas e estudos marítimos me trouxeram até aqui. – Disse, voltando a cabeça como que à procura de seus olhos. E logo estavam diante do hotel, onde um garoto levou sua bagagem para um dos quartos.

Era um sobrado de dois pavimentos, de aparência externa quase rústica, mas seu interior surpreendia pelo conforto e bom gosto. Realmente uma bela edificação feita a mando de um grego rico e excêntrico que tinha chegado ali com o objetivo de montar uma frota de pesca. Trazia em seu peito apenas uma grande paixão – o mar. Encantou-se de tal maneira pela localidade que resolveu ficar. Então construiu para sua residência este prédio bem sólido, na parte mais elevada da praia, num pequeno promontório batido pelo vento e cheio de gaivotas, que na maré cheia ficavam mergulhando em busca dos pequenos peixes que por ali nadavam. Possuía janelas largas que se abriam para um mar brilhante, como a proa de um navio. Num povoado de raras edificações, tal construção destacava-se como poderosa. Sua posição e localização permitiam que o mar fosse emoldurado fantasticamente em quase todas as janelas. Nos dias ensolarados se avistava os barcos de pesca, e nos dias frios, em que a neblina imperava, podia-se ouvir o crepitar do fogo numa lareira localizada na parede interna de uma grande sala, o que trazia certo alívio naqueles dias desolados. Com a morte do seu antigo proprietário, coube aos seus herdeiros transformar o aprazível local em um acolhedor hotel.

Após cumprir de forma inusitada a sua função de acolhedor, ele resolveu dar uma volta pela praia procurando espairecer. Soprava uma brisa extremamente fria. Puxou a gola do casaco sobre as orelhas e apressou o passo. Em sua cabeça continuavam as dúvidas a respeito dela: Por que viera a lugar tão inóspito? Deve haver algum motivo que a trouxe a um lugar perdido como este. E se fosse alguém a serviço dos opressores em busca de seu paradeiro? Mas não havia como não lembrar-se de sua beleza. Seu sorriso era capaz de derreter qualquer dúvida. Não, decididamente não queria estar pensando nela, e, no entanto, sentia que algo inteiramente novo o intimidava. O cansaço e preocupação em se manter incógnito no povoado faziam aumentar em sua mente a impressão de abandono.

Na manhã seguinte, bem pelo início do dia, tomara seu café no bar do cais e, como de costume, aguardava o convide de um dos pescadores para sair em busca de peixe. Permanecia sentado na areia olhando aquele oceano tão maravilhoso a sua frente, mas só conseguia pensar nela, em seus olhos, seus lábios. Como podia acontecer algo assim com ele que sempre havia sido tão cético quanto ao amor e agora estava encantado por uma estranha. Tinha que admitir estar prestes a sentir-se totalmente apaixonado por ela. Em seu íntimo tentava argumentar: - Qual homem normal não se apaixonaria por tamanha beleza! - O problema em sua mente seria como faria para viver esse sentimento com uma pessoa que acabara de conhecer. Se ela realmente veio em busca de pesquisas, e talvez algum tipo de laser, logo a veria partir e ele se sentiria terrivelmente só. Não, pensou consigo mesmo, deve ser porque ainda estava cansado e confuso pelos acontecimentos que vivera a bem pouco tempo. Um pouco de sol do amanhecer lhe faria recuperar a razão e as idéias.

Voltou o olhar para o cais e, como que por encanto, lá estava ela. Ainda mais bonita do que na véspera. Chapéu de palhinha, vestido branco e óculos escuros que lhe escondiam os olhos. Caminhou em sua direção, retirou os óculos, fitou seus lindos olhos verdes, como que para ter certeza de que ele era a pessoa que realmente queria encontrar, e parou a um passo de distância.

Queria fazer um passeio de barco, na verdade não era um passeio e sim uma pesquisa aos sambaquis, lembranças dos homens primitivos que ali viveram. De fato, havia ali uma praia bem afastada, que os moradores chamavam Praia dos Índios. Recebera este nome por causa de um cemitério indígena. De acordo com a lenda narrada pelos moradores mais velhos da ilha, os indígenas que povoavam a ilha tinham como hábito sepultar seus mortos naquele local, que consideravam sagrado. Seus líderes, quando já pressentindo o final da vida, eram levados por uma comitiva de jovens guerreiros, dos quais um seria posteriormente escolhido para ocupar a liderança da tribo. Esses jovens ali permaneciam em rituais fúnebres até a morte do velho líder, dando assim seqüência aos costumes de seus ancestrais.

Dificilmente alguém ia até lá, pois temiam as correntes marinhas que tornavam a navegação muito perigosa. O mar era o único meio de chegar ali, pois os altos rochedos impediam o acesso por terra.

Ele encarou a jovem de cima a baixo, arregalou os olhos estranhando o convite e não se conteve: - Espere aí, não sou guia turístico! - Não atentava para a aproximação tática da bela criatura que era esguia e de andar leve. Afinal, nada restara até então além de um encontro rápido e fortuito. Rigorosamente nada. E, como não conseguisse se livrar de tal situação resolveu aceitar a proposta. Acertaram para o dia seguinte o horário e o local de embarque.

Mal amanhecera lá estava ele. Não confiava que ela estivesse à sua espera no cais, conforme combinado. Enganara-se, ela chegou bem cedo. Voltando os olhos para ela, que usava uma canga florida, amarrada ao pescoço, cumprimentou-a e recebeu um belo “bom dia” acrescido de um alegre sorriso. O seu rosto brilhava ao sol, como tudo naquela manhã. Ele arrependeu-se de sua rispidez, pois além de bonita era dócil, e aquele sorriso realmente o envolvia.

Ele encostou o barco para transportá-la, tentou desculpar-se da embarcação ser de pesca e não de passeio, pois recendia a peixe. Ela não deu muita atenção para o argumento. Embarcou e descansou no chão da embarcação umas sacolas e uma mochila. O calor já fazia arder seu rosto. Baixou os ombros em rendição – Tudo bem! Temos provisão para um dia inteiro - disse sorrindo.

O barco estava em movimento fazia quase meia hora, ele na direção e ela perdida em apreciar tudo à volta. Ele, sem assunto: - Já estamos chegando! - disse aumentando a voz para superar o ruído do motor. Ela tentando entabular um assunto: ¬¬- Como aprendeu a manejar o barco? –– Ele disse seriamente, como que querendo encerrar o assunto: - Foram os pescadores amigos meus! - Realmente aquela criatura era esquisita mesmo, e parecia querer se meter em sua vida.

Ainda um pouco perdido em seus pensamentos, ele, para dissimular suas preocupações, começou a dar explicações sobre o local em que havia os tais sambaquis. Como grande entendido, dizia que a cada doze horas havia fluxo e refluxo da maré, e que naquele momento estavam na baixa maré, mas que no final da tarde a maré voltaria a subir. Ela era toda atenção, fixava o seu olhar nele e, logo após, fazia algumas anotações em seu caderno. - Neste local costuma ter banco de areia e a embarcação pode virar. – disse ele, e acrescentou que não poderiam se esquecer do horário de voltar, pois correriam perigo se tivessem que enfrentar a mudança da maré.

Finalmente chegaram bem próximo à praia. A paisagem era acolhedora, mas o mar batia com insistência nas pedras, deixando pouco espaço de areia para o desembarque. Ele desligou o motor e conduziu a pequena embarcação com fortes remadas, entrando em um riacho de águas turvas e amareladas que ali desembocava, evitando os bancos de areias, passaram por curvas tão estreitas e cheias de vegetação que seria quase impossível navegar com o motor ligado.

Desembarcaram e avançaram pela areia. Ele resmungando e advertindo de que não poderia haver atraso para o regresso. Ela entusiasmada com o local solitário onde umas gaivotas e andorinhas do mar voavam sobre suas cabeças com grande algazarra, fotografava tudo a seu redor. Ainda sem depositar nela alguma confiança, ele procurava fugir do foco da máquina fotográfica. Em sua mente ainda imperava a desconfiança de quem vive às ocultas. E se ela realmente quisesse documentar e revelar seu esconderijo àqueles que, por certo, ainda o queriam preso? Ele se questionava.

Ele se afastou um pouco e ficou por alguns momentos apreciando sua dedicação e extremo cuidado em manter as pilhas de conchas e alguns restos de ossos simetricamente empilhados. Ela examinava cada concha que encontrava naquele sítio, e recolocava-as em seu devido lugar e fazia anotações em seu caderno. Em sua observação, ele pode presenciar meia dúzia de borboletas coloridas que sobrevoavam sua cabeça em perfeita formação de balé. Como gostaria de fotografar esta cena, mas não tinha coragem de lhe pedir a máquina, reconhecia ser sua ferramenta de trabalho, e além do mais, isso quebraria a magia do momento. Continuou andando a esmo, sempre se afastando dela.

Passado algum tempo regressou, e por mais que não desejasse fazer qualquer ruído, não conseguiu. Ao pisar sobre uns gravetos ressecados produziu barulho suficiente para espantar um bando de gaivotas, que levantaram vôo. Ela ao vê-lo, como se ele estivesse oculto há muito tempo, abriu um sorriso numa demonstração explícita de prazer e veio ao seu encontro. – Você acabou de espantar meus modelos - disse em gracejo, apontando para as aves que se afastavam em fuga. Incapaz de suportar os olhos dela, não podia desviar os seus das suas mãos, que segurava com desenvoltura a câmera fotográfica. O sangue afluía em seu rosto e desejava tocar suas mãos. - Não queria interromper seu trabalho. - ele disse, tentando não corresponder ao seu sorriso. – Não podemos demorar muito, a maré está mudando e a viagem de volta pode ficar perigosa. Ela lamentou ter que abandonar o seu trabalho e o local tão aprazível para um belo piquenique e o fez prometer que voltaria ali o mais breve possível.

Depois daquele passeio ele foi dormir perturbado pela presença dela. Acordou em plena madrugada, mergulhado em pesadelos que o atormentavam. Logo lhe veio à mente a imagem dela. Quem sabe, ela lhe desse algumas explicações sobre quem era e o que realmente viera fazer ali. Embora receasse ter maiores intimidades com ela, teria que enfrentá-la. Pela janela observou o luar novo que dominava toda areia da praia. A luz apagada de seu quarto acentuava a cena nostálgica. Pensou em sair, caminhar pela areia. Na verdade não queria analisar os seus pensamentos, sabia que no fim haveria de esbarrar numa muralha de ridículo, diante da realidade que se lhe apresentava: ela era livre, poderia ir-se quando bem quisesse. Quanto a ele, teria que permanecer oculto, sem saber sequer por quanto tempo.

Na noite seguinte, refez o antigo itinerário noturno, só que não queria beber e jogar com aqueles que agora já o consideravam companheiros, os pescadores. Ainda que sua ausência pudesse muito bem significar uma falta irreparável para seus amigos, sentia que sua vida até agora frustrada, poderia ter uma nova direção. Deu de ombros e prosseguiu em seu caminho rumo ao hotel. Finalmente cedera ao pretexto de ir buscar um livro que ela lhe oferecera, durante breve conversa no caminho de volta do passeio de barco.

Subiu ao segundo pavimento, conferiu o número do quarto fornecido pelo funcionário da portaria. Bateu apressado na porta. Uma voz suave vinda do interior disse que podia entrar. Ele prontamente entrou.

- Desculpe-me pela precipitação ao entrar. - ele disse, com certo acanhamento. Ela, percebendo seu embaraço, suavemente afirmou que já o esperava, proporcionando-lhe um prazer curioso. Era a primeira vez que entrava em seu quarto. Aliás, a primeira vez que entrava no hotel. Nunca o fizera, por orientação de seus protetores, que o alertaram para manter-se bem afastado dali, já que, por ser o único hotel do local, fatalmente seria o primeiro espaço onde iriam procurá-lo. Mas, naquele momento, o que menos desejava era pensar em sua situação tão precária de exilado no próprio país. Com olhos pregados nela, parecia não ver perigo algum em estar ali, chegando a reconhecer que julgara mal aquela criatura. Era óbvio que não havia ninguém a quem confidenciar tal aventura, e mesmo que houvesse, não iria comentá-la, pois o seu modo discreto de ser não o permitiria.

Assim, em animada conversa foi se tornando mais afoito em descobrir sua verdadeira identidade, sempre questionando sem cerimônia a bela criatura que se encontrava à sua frente, sem que ela demonstrasse qualquer surpresa quanto a sua iniciativa e sua insistência em saber por quanto tempo ela permaneceria naquele local tão isolado. Ela deu um sorriso, abriu os braços como sinal de rendição e disse que suas férias já estavam se esgotando, portanto teria muito pouco tempo para terminar seu trabalho de pesquisa e aproveitar aquele lugar que, segundo ela, seria o próprio paraíso, ao que ele retrucou por não concordar, pois para ele aquele lugar representava o prolongamento de sua prisão. Ele não queria continuar a falar sobre sua vida, sobre aquele vazio dentro dele que não conseguia preencher com mais nada. Ela entendeu seu pesar e o demonstrou com um beijo em sua testa. Ele, sem palavras, se distanciou um pouco para olhar seus olhos.

Na verdade, não conseguia desviar o olhar dela, pois era a única mulher que conseguira mexer com ele até aquele momento. Em seu íntimo avaliava que à medida que os dias se passavam ele via, com uma espécie de delicioso horror, crescer seu amor por ela. Ao mesmo tempo percebia, com nitidez cada vez maior, o caráter absurdo daquela ligação, os problemas e perigos que poderia criar. Antes de conhecê-la, às vezes sentia-se forte e quase orgulhoso de sua solidão. Pertencia a si mesmo e a qualquer momento poderia colocar sua capacidade e paixão, até a própria vida, a serviço da causa que anteriormente havia abraçado. No entanto, os últimos dias vieram com as transformações e os questionamentos: seria justo viver isolado, sem família, sem sonhos ambiciosos de riqueza ou poder?

E assim passaram algumas horas em animada conversa. Quando se deram conta, já ia longe a noite. Ele tomou de suas mãos o livro que servira de pretexto para o encontro. Despediu-se dela radiante, confirmando para o dia seguinte o retorno à praia dos sambaquis.

Partiram logo pelo amanhecer. No local de desembarque, algumas gaivotas os aguardavam. Tão logo desembarcaram, as aves decolaram como uma perfeita esquadria de aviões. Ela sentou-se com as pernas cruzadas sobre uma pedra à beira da praia e ficou observando a água, em profunda meditação, como uma nostálgica despedida daquele lugar que aprendera a amar. A maré estava enchendo lentamente e já alcançava seus pés.

Ele aproximou-se, segurou sua mão para ajudá-la a ergue-se e indagou se não iria trabalhar em suas pesquisas. Ela nada respondeu, simplesmente apoiou-se em seu braço e saíram caminhando. Mantiveram-se em silêncio enquanto caminhavam. Mesmo sem admitirem, ambos estavam tentando habituarem-se da melhor forma possível com a separação inexorável que se aproximava. Seus dias de férias esgotavam-se e ele teria que enfrentar e aceitar a sua ausência.

Ele apontou para uma garça que, com um dos pés mergulhado na água do riacho próximo e o outro suspenso, aguardava o momento oportuno para bicar alguns peixinhos à sua volta. Sua sombra oscilava na água refletida pela luz do sol. – Olha que bela cena você tem aí diante dos seus olhos, daria uma boa foto! - disse ele. Ela, com as mãos abertas e ombros erguidos: – que pena, deixei minha máquina, junto com meu caderno de anotações, lá na praia. Ela fez menção de ir buscar de seu material de trabalho. Ele virou-se de repente, como se estivesse ouvindo seus pensamentos, deu um passo em direção a ela, aproximando-se o suficiente para sentir o odor suave de seu corpo. Ele a abraçou e a puxou suavemente contra seu corpo, envolvendo-a com seus braços. Percebeu que ela cedia ao seu impulso e não desejava deixar passar aquele momento mágico. Ficaram se olhando por algum tempo com uma intenção que não foi dita. Naquele momento os seus corações diziam o que os lábios não pronunciavam. Ela reclinou-se sobre seu peito. Desejavam-se desde que se conheceram, não havia a menor dúvida.

Amaram-se, presos a este momento, de tal modo que nem perceberam que uma nuvem ocultara o sol e a luminosidade se reduziu a quase uma escuridão e a maré, estimulada pelo vento, havia subido e o barco ameaçava romper as amarras. Correram em direção à embarcação e conseguiram retornar, apesar de enfrentarem ondas que os castigavam.

Por insistência dela, resolveu aceitar passar a noite em sua companhia.

Quando acordou, ainda estava chovendo e as cortinas haviam sido cerradas, o que dava um clima de penumbra no ambiente. Rajadas de vento atiravam a chuva contra a janela, numa saraivada que abafava por alguns momentos o ruído interminável da ressaca. Levantou-se, acendeu a luz para olhar o relógio. Deu pela falta dela. Talvez tivesse acordado cedo para fazer suas malas ou quem sabe estivesse providenciando um café para ele. Vestiu sua roupa e saiu a sua procura. Não a encontrou em qualquer parte do hotel. Foi tomado pelo pânico ao constatar que ela não tivera tempo de recuperar seu material deixado na praia no dia anterior e possivelmente teria ido buscá-lo sozinha, por certo pelo zelo de não incomodá-lo.

La fora a neblina não estava tão espessa como parecera da janela. Enxergava o suficiente para notar que o barco já não estava atracado no caís. Ele tinha tido o devido cuidado de amarrá-lo com firmeza e planejava devolvê-lo ao proprietário o mais breve possível.

A hora seguinte foi certamente a mais longa de sua vida. Ficou sentado à beira do caís tentando recompor a situação.

- Acalme-se. Todas as providências serão tomadas! Disse uma voz atrás dele. Ele virou a cabeça inquieto e retrucou: - Onde ela queria chegar com um mar desses? Seus lábios pálidos continuavam a moverem-se, mas já não articulavam qualquer palavra e seus olhos ficaram opacos sem qualquer expressão. Perdera a razão por completo e nunca teria como saber que ela foi encontrada flutuando junto com uns restos do barco deixados pela maré.

*****

Naquele momento, o sol poente cobria de vermelho alaranjado os limites do horizonte. Já não conseguia apreciar a beleza daquele pôr de sol. Caminhou para a ponta da praia rochosa, subiu a um penhasco, contemplou demoradamente o vasto mar diante de seus olhos. Subitamente virou-se para umas pedras em que fortes ondas vinham bater, deu uma insana risada acrescida de um forte grito: - Por Netuno! – Repedindo a expressão em franca demonstração de que já se integrara aos costumes e frases dos pescadores. Durante longos dias estivera a procurá-la e não agüentava a sua ausência e, de repente, ali estava ela diante dos seus olhos. Estava linda com os cabelos negros jogados sobre a bata branca. E à medida que se aproximava conseguia visualizar melhor seu rosto. Estava realmente linda.

Era inacreditável, mas ela parecia chamá-lo para junto de si, como nas histórias de sereias em que elas, com encantadora voz, seduziam os mais experientes homens do mar. Por várias vezes ouvira esta lenda ser narrada pelos amigos pescadores, portanto poderia constatar de sua veracidade.

Enquanto ele pensava no que fazer, deu alguns passos em sua direção. A sua presença era tão forte que o levou a murmurar seu nome como se pretendesse conversar com ela, na tentativa de convencer a si mesmo da realidade de sua presença. Mas a sua doentia mente o fazia crer que os olhos dela não estavam focados nele. Tinha necessidade de se aproximar dela. Mas o mar não estava disposto a graças, agitava-se e rugia em ameaçadoras ondas escuras. Nem os primeiros e fracos raios do luar conseguiam trazer luz ao sombrio local. Ondas em turbilhões explodiam de encontro às pedras, afastando de seu olhar a figura de sua amada, continuou escalando as pedras, aos tropeções e quedas, sempre movido por grande ansiedade e raiva. Assustou-se com a explosão de uma onda mais brava aos seus pés. Não desistiria nunca de ir ao seu encontro. Arranhado, exausto, chegou ao topo da última pedra já saboreando a vitória. Mas diante dele vislumbrou somente o mar vestido com a sombra da noite, que não gostou do seu atrevimento em desviar os olhos dele e dirigir-se àquela bela criatura. Enfezara-se e fez explodir uma onda gigante contra seu peito, fazendo com que perdesse o equilíbrio, caindo de encontro às pedras limosas. Por breves momentos conseguiu agarrar-se às ranhuras da pedra. O mar, em contra partida, fustigava cruelmente as ondas contra ele, como quem estimula cães ao ataque do inimigo.

Finalmente lá de baixo, rente ao pé do penhasco, um turbilhão de águas subiu e abriu-se, como uma profunda fenda, engolindo-o. Bem que resistira, lutara. Já não tinha qualquer consciência, ainda que de forma precária, sobre os acontecimentos. Não teve tempo de esboçar qualquer sintoma de pavor. Sua fisionomia era de terror, medo da morte.

Nesse momento, a lua, antes apagada, clareou e mostrou lá embaixo o mar que se abriu como um negro manto à espera do seu corpo.

Laerte Creder Lopes
Enviado por Laerte Creder Lopes em 10/03/2011
Reeditado em 13/05/2011
Código do texto: T2839763
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