Fragmentos do Ciclo dos Símios

Fragmentos do Ciclo dos Símios

quase Hemingway

isso foi só no começo, enquanto escrevia os oito capítulos iniciais. eram sensações ruins, não sabia bem se era ficção ou romance. alucinada, vomitava um monte de palavrões. dizia: "Carlos, continue batendo!". e ele respondia: "comprei botas novas!". depois de boas surras eu fumava um pouco, esmurrava a porta do mobilhado e caía no sono. aquelas coisas continuavam brotando da minha boca, a violência era atraente para nossos corações atormentados. ele era parecido com Hemingway, quem sabe um pouco melhor. abri a gaveta do meio e puxei o porrete, guardado embaixo das calcinhas e bati nele com toda força, “enfia no rabo, com querosene e coloque fogo, honey!”

expiação

amarrou pernas e braços, reforçando a condição eterna de subjugada. a boca deixou solta, pois já não importava mais o que ela dissesse, eram só palavras de um serzinho magoado e isso o divertia. reclusa não chorou em nenhum momento ou implorou pela liberdade, não daria a ele essa satisfação. vieram os outros e por falta jogaram pedras, é fácil ser pedra.

móbile

os olhos brilhavam, ele bailava num ritmo próprio quase alucinado revirava-se. ou seria apenas o vento, um frescor sob sua armação? erguia o queixo para o alto como se orasse, mas só conseguia aquela expressão quando me ouvia gemer depois de ser currada, a minha dor soava redenção. no nono capítulo, ela revelava toda honra e toda glória ao deus príapo. Carlos esquecia-se de suas dores e tornara-se Dom Quixote queimara todos os moinhos de vento, galopava e gozava sobre sua Dulcineia.

livros

não recebi nada nos dois últimos meses, por não entregar duzentas páginas como o combinado, estava atrasada. no décimo capítulo, não dariam o emprego a Carlos com a cara estourada, ela trabalhava muito, ganhava pouco e estavam na lona. beberam a garrafa de vodca em grandes goles. ela vomitou a manhã toda, quando melhorou escolheu seus melhores títulos e vendeu para um sebo. garantiu jantar e bebida naquela noite.

redoma de vidro

colecionava souvenires das mais belas cidades do mundo, admirava mais os globos cheios de água e brilho ou pequenos flocos de isopor que imitavam neve. estavam dispostos nas prateleiras mais altas para que não fossem tocados por estranhos. não que quisesse conhecer lugares diferentes ou ter sensações novas, mas apenas o deleite de estar presa dentro de uma esfera segura. no décimo segundo capítulo, os baobás não tomariam seu planeta, tão pequeno quanto o do príncipe. datilografou insana as cinco páginas e com os olhos cheios de água sufocou, aquela tarefa vencia suas forças. a casa já não era um ambiente controlado, ele não era a rosa, nem o único do universo, mas a constatação de que precisava dele era assustadora.

amor

serviu-me a flor como prato principal. ensinou-me arrancar pétala por pétala até chegar ao coração. esse sim, era iguaria fina desconhecida ao meu paladar que aprendi a degustar e salgar por suas mãos teatrais. no décimo terceiro capítulo, ela descobriu que a alcachofra não é flor e sim inflorescência, como o abacaxi. juntou os papéis de seu último pretenso livro e os jogou pela janela, rindo! um copo com uísque, não em grande dose mas o suficiente para fazê-la dormir.

dados

lançaram-se extremos sobre o veludo azul, fácil demais para ser real. “seis, dois”, gritava o crupiê. suspiro do que não veio. no décimo quarto capítulo, perceberam que os dados são viciados derrota. um era seis e o outro nunca caía com um, ambos infiéis provocadores. se juntos somassem sete ou onze não estariam entregues aos jogos de sedução nem ao dilema da perda.

preâmbulo

o cansaço dominava o cenário, cochilou com o cigarro entre os dedos. o vazamento da pia dava o compasso da cena. a boca aberta, podia ouvir seu coração e a quietude sob a coberta alaranjada. a sensação de sossego beirava a fúria, jamais confessaria o que fez. talvez a beleza das coisas resida nesses momentos suspensos. o tudo habita onde aparentemente nada acontece.

circo

se dissesse que não gostava do espetáculo ririam de mim. tenho antipatia por palhaços, pois se parecem comigo. minha desgraça é pano de fundo para a alegria alheia. a platéia esperava ansiosa pelo globo da morte, o barulho ensurdecedor para quem não quer ouvir mais nada. no décimo oitavo capítulo as labaredas giravam na mão daquele homem, segurava as adagas como se não cortassem. o público vibrava e a roda girava num ritmo frenético. ela era o alvo do atirador de facas.

winchester

Carlos teve mais sorte, tinha amor por ele e sei que seu desvio era por conta da personalidade opressiva de sua mãe. entrou pela saída de incêndio, todo molhado, numa noite chuvosa e foi ficando. já no décimo nono capítulo ela dizia: “o último cara que me bateu acabou dentro do rio, matei com dois tiros depois de ter batido nele, empalado seu lindo rabinho com o cano de winchester. quis mesmo esfaqueá-lo no coração, mas não gosto de mortes sangrentas e nem tenho um canivete. era uma bicha enrustida, chegou confessando paixão por mim, mas não conseguia ter ereções e me espancou por conta disso. não perdoo esse tipo de comportamento imbecil, não perdoo!”.

o boi

a quase guerra duma camisa no varal com o vento. uma cerca de arame farpado protege o quintal. o mito passeia pelo paladar, é carne! nada bucólico, cru, não causa náuseas e mata a fome. no vigésimo capítulo, sob a sombra da pedra preta, Guernica pasta. é bovina a carne que dobra no prato e meu olho desprende mil farpas na direção daquela camisa suada, entreaberta sobre o peito dele. consumo a erva da beira da estrada, a mesma que alimentou o boi. Carlos dorme, alheio à refeição e ao mito.

olho mágico

se olharam fixamente sem dizer uma só palavra. uniram-se para ver em alto relevo, o sangue na jaqueta de couro era só pretexto, o que queriam mesmo eram sensações em três dimensões. enquanto um sufocava, o outro respirava com dificuldade e o terceiro nem isso. mal se davam conta que precisariam se livrar do corpo, beberam até perder os sentidos e dormiram com o morto naquela noite.

cortinas

pensava que ser livre era bom, se perder nas escadas rolantes, estacionamentos rotativos e vagões do metrô. se entregar a estranhos era divertido e perigoso. espiava por trás das portas e não se assustava com mais nada. no décimo quinto capítulo as igrejas estavam lotadas e ela já não queria perdão, enrolaram o corpo nas cortinas e os dois desceram com ele pela saída de emergência.

a cruz

a ignorância imperava ali. comprara um martelo e se encheu de alegria. nunca fora tomado por um sentimento tão crucificante e redentor. hoje todas aquelas redomas de vidro seriam quebradas. no décimo sexto capítulo, os olhos de Carlos estavam vazios e só pensava no dolo de quebrar a resistência dela.

a bailarina

lembrava de meu pai naqueles dias de chuva, foi num dia como aquele que foi e não voltou. ele nunca esteve muito tempo dentro de casa e recordava-me dele apenas pelos presentes que trazia e pelo cheiro de bebida e cigarro que exalava. trouxe-me uma vez uma caixinha de música, dessas que vem com uma bailarina. talvez por isso bebia e fumava tanto, para ter de volta o cheiro de infância. no vigésimo quarto capítulo, Carlos a tirava pra dançar e ela sentia-se como a bailarina da caixinha, rodando, bêbada, sobre um mar de espelhos.

calundu

a mãe falava com os mortos e cedia seu corpo a eles. Carlos lembrou de que quando criança ouvia conversas no escuro, sussurros por trás das portas e nunca soube dizer se era a religião ou o estilo de vida dela. ao amanhecer o banhava com unguentos e canções de maldição, um culto secreto de glória ou de lamentação, como saber? recordava que fora tomado por tios e por desconhecidos e não se lembra se vivos ou não. o certo é que era violentado por herança materna. no vigésimo quinto capítulo, ele escondia o rosto para chorar e sufocava os soluços no travesseiro. a fita da máquina de escrever estava gasta, mas mesmo assim queria continuar escrevendo, ela não era sensível e nem tinha tato para assuntos tão pessoais.

o disco dos símios

o vinil está sujo, a agulha vai e volta no mesmo ponto, mas ninguém desliga a vitrola. uma varejeira sobrevoa as sobras do nosso jantar, talvez o último. uma mosca consegue nos desprender da uniformidade da cena. é verde e voa rápido demais. não temos mais o que falar, só ficou a indiferença e o desprezo. Carlos num único e certeiro golpe a derruba e tudo volta ao normal. no vigésimo sexto capítulo, o relógio parou e está estático como o retrato dos três macacos. o cego insiste em ouvir, o surdo insiste em falar e o mudo cansou-se de tudo.

tramontina

trago marcas de faca no peito, no ombro esquerdo e nas pernas. foi a falta de amor de meu pai por minha mãe que causara tais cicatrizes. herdei dele o abandono precoce e dela os amantes. e é aí que a minha história se parece com a de Carlos, a diferença é que não acredito em espíritos. no vigésimo sétimo capítulo, eles arrastavam um corpo para o rio, quase não havia sangue, não fosse o orifício no peito do primeiro tiro, o único que sangrava. os amores rasgam feito as facas de cozinha, pouco afiadas para não cortar os dedos, mas pontiagudas e no tamanho ideal para furar fundo.

pretextos

estavam cúmplices desde o princípio, sem ausências. mesmo em pequenos gestos conseguiam se entender. um era o limbo, não podia se perdoar pelo frequente equívoco de fazer promessas que não cumpriria. o outro era o oposto, não se prendia a nada. nesse capítulo descobririam que ambos são mendigos, andarilhos errantes. perderam o rumo, se contentavam com migalhas. não há um ser que se possa chamar de “casa”.

peixe morto

já te pedi algumas vezes para que não me olhasse assim, esse seu jeito quase me dói, sabe bem de meus defeitos, não ouso enganar ninguém. hoje posso ficar mais um pouco só pra te agradar, vir deitar mais cedo, encher seus ouvidos de sonhos e seu corpo de amor. no vigésimo oitavo capítulo, deixou o sol dormir um pouco mais e sustentou os medos dele entre seus seios, sem promessas posteriores. era mais fácil amar de verdade no passado que no presente. lá no passado, como lembrança trancafiada em algum canto escuro, o amor é garantido por ser pretérito. ontem deparou-se com vários olhos como os dele boiando na lagoa Rodrigo de Freitas.

liberdade

inspirei como se fosse só pulmões e expirei como se botasse até a alma para fora. a consciência berrava ao mesmo que me entregava em gozo silencioso.

no vigésimo nono capítulo, Carlos colocou o cano da winchester na boca e sentiu o gosto do chumbo. em algum momento ela o comparara a Hemingway, então se sentiu em cuba, quase revolucionário, num desespero que beirava crença. ao menos agora a consciência também se calaria.

baixio das bestas

datilografou três possíveis desfechos para a cena, o personagem permanecia caído no chão. a malhação do bode expiatório cabia bem à ocasião, as pessoas se acalmam ao extravasarem suas insatisfações, mas por hora não descartaria os pregos e nem a arma de fogo. ela indagava-se diante da humanidade que crucifica seu salvador é melhor dar a outra face, abotoar nele o paletó de Judas ou deixar que ele resolva o problema sozinho?

miolos

gastei alguns neurônios para entender Schopenhauer no seu aspecto existencial, mas ao concordar com ele em vários pontos abdiquei da esperança. apetecia-me o sabor das vísceras de animais, o fígado era o mais apreciado. no trigésimo primeiro capítulo, encontra Carlos sentado no chão com os olhos fechados, cabeça pendida sobre o peito, mais uma vez o comparou com Hemingway, mas ele era melhor, conseguiu tocá-la como poucos. mas o cheiro de seus miolos não sai das narinas, não sai.

retroescavadeira

não há discernimento em autobiografias, era melhor falando dos outros. propaganda enganosa é o falar de si, pura e simples propaganda enganosa, pensava. Carlos morto explica-se melhor que ela. olhava para ele como quem observa um detento, sabia que não gostava de ternos, dizia que sempre o apertam em algum lugar, mesmo os feitos sob medida. desconhecia o terno e quando eclodia em sua alma perturbada, internava-se. sabia mais dele do que de si.

buraco negro

datilografei mais de cem páginas perseguindo um personagem que tentei manter à distância. tarde demais, já era um objeto em órbita de colisão sem escape, atraída de volta à região de onde fora gerada. poderia me perder no céu de sua boca, feito o sentido das palavras voltadas à verborragia incrédula de quem não crê em semiótica. no trigésimo quarto descobre que nem as estrelas vivem para sempre e que perdera por completo o controle da situação, encontrava-se em colapso caindo sobre si mesma.

aprendiz

fosse um misto de insegurança e certeza, nem isso. aquilo era torpor cego, loucura. personagem comandava certeiro e brotava em cada linha mal feita, em cada palavrão dito enquanto ele dormia. determinada a fechar aquele ciclo digitava calada e faminta pelo verbo. no trigésimo nono capítulo, não era Carlos que pulava a janela e sim a realidade nua, violenta e sem alegorias, aprendia com ela.

Larissa Marques
Enviado por Larissa Marques em 14/03/2011
Código do texto: T2848379
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