Relativ(@)idade

Dia desses, vinha eu dirigindo o carro rumo ao trabalho - meio distraído, devo confessar, com o pensamento lá pelos confins do Universo -, quando fui pego pelo radar móvel a 90 km/h, num trecho da rodovia em que a velocidade máxima permitida é de 80 km/h.

Ao sinal do policial rodoviário, que surgiu de repente, não sei bem de onde, parei no acostamento. Ele aproximou-se do carro e pediu-me que apresentasse o documento do veículo e minha habilitação. Examinou a documentação, foi lá atrás conferir a placa do automóvel e voltou, já com a caneta e o temível bloquinho de multa nas mãos, dizendo:

- Tudo em ordem com o carro e com sua habilitação, mas o senhor estava em excesso de velocidade e terei de multá-lo.

Ao ouvir a inapelável sentença proferida em rito sumário e tom sombrio pelo dedicado policial, busquei recobrar a razão acelerando o regresso do meu pensamento, que àquela altura dos acontecimentos ainda se achava em algum lugar distante do nosso sistema solar. E, incontinenti, passei a argumentar:

- Senhor policial, como o senhor sabe o raio da Terra é de aproximadamente 6.400 km, ou seja, a circunferência do nosso planeta, na altura de onde nos encontramos agora, é de mais ou menos 40.200 km. Considerando que em 24 horas a Terra dá um giro completo em torno de seu próprio eixo imaginário, podemos concluir que estamos, o senhor e eu, nos deslocando a uma velocidade de 1.675 km/h, e só não saímos voando por aí graças à providencial força da gravidade que nos mantém presos à superfície.

Naquele instante, pude perceber que o policial assumira um semblante de poucos amigos, mas não me deixei abater e, antes que ele pudesse dizer qualquer coisa, continuei:

- Acredito que o senhor também saiba que a Terra, em aproximadamente 365 dias, ou 8.760 horas, percorre uma distância próxima a 940 milhões de quilômetros para dar uma volta completa em torno do Sol, ou seja, nesse movimento de translação nosso planeta se desloca a uma velocidade de mais ou menos 107.000 km/h, e nós vamos junto.

Dito isso, sequer tive coragem de olhar para o policial plantado ao meu lado, de caneta e bloquinho de multa em punho, pronto pra ação. E, sentindo-me como quem caminha inexoravelmente rumo ao patíbulo, mas ainda esperançoso de algum sucesso no intento, prossegui:

- A coisa não para por aí, pois nosso sistema solar, com seu modesto séquito de planetas, satélites e asteróides, segue a bordo da Via Láctea, girando em torno do centro da nossa bela galáxia espiral a uma velocidade em torno dos 810.000 km/h. E a Via Láctea viaja no Universo à velocidade de 230.000 km/h, em rota de colisão com a majestosa galáxia de Andrómeda, o que, para nosso alívio, somente deverá ocorrer em 5 bilhões de anos, segundo estimam hoje os cientistas.

Cheio de razão para com meus próprios botões, mas ainda sem a necessária coragem para voltar a encarar o impávido paladino da lei de trânsito postado ao lado do meu carro estacionado no acostamento, tomei fôlego e fui em frente, na esperança de triunfar:

- Como o senhor pode ver, senhor policial, somadas todas as contribuições rotacionais e translacionais do nosso movimento planetário-estelar, resulta que estamos viajando no Universo a uma velocidade superior a um milhão e cem mil quilômetros por hora. Ainda assim, o senhor quer me aplicar uma multa por que eu estava a apenas 90 km/h?!...

"Bem, agora seja o que Deus quiser" - pensei, com meus velhos e compreensivos botões. Mal acabei de dizer isso a mim mesmo, no mais absoluto silêncio, veio o policial, agora com cara de menos amigos ainda:

- Espantoso o que acabo de ouvir do senhor. Eu nunca tinha pensado nisso assim dessa maneira. Realmente, o Universo é fascinante, e nós, pobres mortais, ainda sabemos tão pouco sobre ele...

Quando ele falou assim eu me animei todo, mas aí veio a ducha fria; fria não, gelada, glacial:

- ... mas, considerando que estamos no planeta Terra, e com os pés no chão, mais precisamente num trecho da BR-364 onde o limite de velocidade estabelecido pela lei dos homens é de exatos 80 km/h, e o senhor vinha a 90 km/h, vou ter mesmo que multá-lo.

Foi quando a caneta começou a deslizar sobre o papel do temível bloquinho de multa, com uma desenvoltura admirável, para meu total e irremediável desapontamento.

Concluído o preenchimento da notificação, o policial destacou a multa e a entregou para mim, juntamente com o documento do carro e minha surrada carteira de habilitação, em cuja foto a expressão do meu rosto igualmente surrado agora me parecia menos animada que de costume.

Com as recomendações de praxe (respeite a sinalização, use sempre o cinto, não corra etc), o policial despediu-se de mim, liberando-me para seguir meu caminho. Antes, porém, ele (a meu ver, ainda surpreso/confuso com a história inusitada que acabara de ouvir, sentimento quiçá potencializado pelo fato de ele ter visto sobre o banco do carona do meu carro um livro com o título "Filosofia do Direito" - um dos que costumo levar comigo para ler enquanto espero a balsa para cruzar o Rio Madeira todos os dias) recomendou:

- Talvez fosse melhor o senhor "voltar para casa"...

(possivelmente por achar que eu seria algum maluco alienígena, uma espécie de viajante cósmico afeiçoado aos números, mas, ao mesmo tempo, levando consigo um livro cento e oitenta graus à esquerda, ou à direita do universo matemático).

Dei a partida no carro, liguei a seta e peguei novamente a rodovia. Quando dei por mim, já estava com o pensamento pra lá de Saturno, rumo a Andrómeda. E o ponteiro do velocímetro já batia novamente na marca dos 90 km/h...

Bip, bip, bip, bip... toca o despertador do meu celular, às seis da matina de uma segunda-feira. Eu estava dormindo. Foi sonho...