Contando a partir do começo talvez a estória interessasse a você. Estórias que não se iniciam cartesianas costumam levar os leitores a outros textos. A opressão do início, meio e fim não costuma nos incomodar. Não deixo de estranhar o fato, pois não enxergo lógica nos enredos que fotografam passagens e querem revelar existências. Sofismam grandes escritores na maior parte de seus escritos. Não quero soar pernóstico, mas não há começo.

 Você não deve se interessar.

Ele a beijou. E a beijou novamente. Primeiro com alguma resistência. Linda, mas protocolar. Segundo com um pouco de intensidade, o suficiente para sentir que era de fato o que queria. Quando enfim a beijou, depois de olhá-la no fundo de seus olhos, agradeceu em silêncio. Ele a procurou. E ao procurá-la novamente, entristeceu. Subiu e desceu escadas. Fumou aceleradamente. Abriu e fechou Neruda. Passou a escrever. Sentiu-se Saramago entre infinitas vírgulas, todas a segurá-lo antes do ponto final que, sabia, não havia de chegar. Enquanto sorriam, falavam sobre música. Enquanto comiam, sobre o outro. Quando entreolharam-se, no mais das vezes nada falaram. Eram bonitos, talvez fossem mais que isso. Ela chegou e ele errou na mão. Errou no primeiro elogio, o que o segundo não amenizou. Sentiu-se bem quando se sentaram lado a lado. Sentiu-se muito bem. E quando discordaram pela primeira vez, sentiu-se seguro. Alegria não precisa ser uma virtude. Talvez, de fato, não seja. Enquanto ela atrasava, ele sorria. E entre um carro e outro ouvia canções que lhe soavam em acalanto. Ao vê-la, intuiu ser aquele o vestido vermelho que em outra noite havia chamado sua atenção. Perguntaria mais tarde. Esqueceria. Por segundos lamentou seu lapso de memória, ainda que absolutamente justificado por olhos cada vez mais profundos. E então ela sorriu. E o mundo parou. A guerra cessou. Os conflitos deram meia-volta. Ébrios voltaram para suas casas entoando cantigas de ninar. O sol nasceu mais forte e a brisa aumentou de intensidade. Poetas acordaram e pegaram suas penas. Nasceram textos e mais textos, forjados na luminosidade daquele sorriso. Ela não percebeu, mas ele sorriu também.

Ele a beijou. E a beijou novamente. E achou uma delícia.  

E quando se falaram, separados por um dia inteiro, o receio disse presente. A supressão do desejo é também um útil remédio contra o medo. Sêneca. Gosto de Lê-lo. Não ligava para a morte. Quem não liga para a morte conhece melhor o tempo. Aliás, dizem que o tempo cura. Digo eu que às vezes ele pune.

Alegria não precisa ser uma virtude, mas saber reconhece-la o é.

Fim? Começo?