O DOUTOR DOS ESPÍRITOS - uma história de amor

INTRODUÇÃO

É uma fria noite chuvosa. As pessoas andam apressadamente de um lado e de outro procurando um abrigo, um lugar calmo para tomar um chocolate ou quem sabe dois goles de conhaque, pois o frio desta noite promete.

Ninguém quer ir pra casa. Mesmo com o cansaço de um dia corrido, as pessoas querem ficar pelas ruas em busca de um olhar amigo e de uma conversa que valha.

Notívagas, são criaturas trancadas em seus próprios mundos, espíritos individualistas e carentes, perdidos dentro de si.

Nas ruas escuras da noturna capital paulista há mais gente do que durante o dia e por incrível que pareça, ninguém tem ninguém. E a solidão e a tristeza imperam sobre o final do dia de cada um.

O Doutor Samuel Luvinstein é um deles.

Não precisa ser um gênio para entender que se trata de um típico judeu-polonês. Errou. É um pseudônimo, mais uma de suas artimanhas para atrair as pessoas e diminuir sua solidão.

Seu nome verdadeiro é um segredo.

Seus olhos azuis e seu nariz fino colaboraram para seu disfarce. As pessoas gostam de nomes estrangeiros; o produto brasileiro só é valorizado assim. Deu outro dia no jornal que o governo exporta laranja e importa suco pronto; nosso doutor acredita que as coisas têm que vir com uma etiqueta de “made in” algum lugar. Esta é apenas uma das frustrações do Doutor Luvinstein.

Aqui está ele, andando numa calçada cheia de poças em torno da Estação da Luz. Aquele cenário inglês que ele admira tanto, onde todos os dias passa horas debruçado na grade olhando gente que vem e gente que vai, cantarolando aquele tango que nunca lhe sai da mente...

“Estação da Luz, depois da meia noite,

Uma tragédia em cada rosto refletida...”.

E ali ele fica, segurando um copo de café que chega a esfriar, gelar, tamanha a distração e devaneio do médico paulista com pseudônimo judeu-polonês, que ama tango argentino e não sai da estação inglesa.

Há de ter uma razão para a complexidade absurda da bagunça que habita esse espírito triste.

Quem sabe se voltarmos alguns anos atrás para tentar entender nosso médico?

I

Ester

Quando Samuel Luvinstein era um jovem recém-formado psicanalista, cheio de idéias e entusiasmo, tinha uma paixão: seu nome era Ester, morava no bairro do Bom Retiro e se consultava com o jovem doutor desde que ele era um estudante.

Ester era uma moça linda e cheia de vida, mas nem sempre fora assim, passou por problemas físicos e psicológicos terríveis por que perdeu o noivo na Segunda Guerra.

Viera fugida com os pais deixando para trás o noivo, um oficial alemão que, apaixonado, arrancou a moça e os pais do Campo de Auschwitz e colocou-os num navio rumo ao Brasil.

Juraram amor eterno. Iam se ver após a Guerra. Deixou com o noivo um endereço de uns parentes que já estavam no Brasil desde a Primeira Guerra, e incrivelmente a carta vinda dos amigos do oficial, chegou antes do navio.

Quando a esperançosa moça chegou na casa dos parentes, com a mente cheia de sonhos e o coração tomado de saudades e esperança, a notícia da morte de seu querido já a esperava.

Trancou-se no quarto, não quis mais comer. Ela, que nos campos de concentração já havia passado fome e havia chegado ao Brasil desnutrida, quase morre de vez.

Raquítica e doente, foi tirada à força do quarto e levada a um hospital onde rapidamente se recuperou graças aos cuidados de um dedicado estagiário. Sim, nosso Doutor Luvinstein. Vem da paixão que nasceu por Ester o pseudônimo escolhido.

Depois que a ajudou a sarar da desnutrição, aconselhou os pais a levarem-na em seu consultório que, em meses abriria, pois estava se especializando em psicanálise. Fazia alguns estágios em clínica geral.

Então com consultório aberto, Luvinstein recebeu Ester, que fez questão de ser sua sua primeira paciente.

Deitou-se no divã e começaram a conversar um pouco, depois o médico a deixou falar. E ela falou, falou, falou e o que era para ser uma simples seção durou muitas horas; ele bebia as palavras da moça, tomado de paixão.

Não precisaria de retorno, a moça desabafou tanto, eles conversaram tanto, ela entendeu enfim a triste sorte de seu romance e compreendeu de uma vez os fatos e que ela estava viva e que a vida deveria ser seguida.

Já era noite, e o médico fez questão de leva-la para casa. Marcaram de se encontrar numa outra oportunidade, sem a ligação médico-paciente, mas que ela fosse como visita. E ela foi. Conversaram mais um bocado, se entenderam, se abraçaram, se beijaram e o rapaz fez questão de no mesmo dia pedir ao pai da moça sua mão em casamento. Noivaram.

A moça começou a trabalhar numa tecelagem no Brás e todos os dias o rapaz saía do consultório e a esperava na Estação da Luz, religiosamente.

Até que um dia ela não apareceu... anoiteceu... e nada.

O rapaz foi à casa de Ester saber notícias, todos estavam preocupados também. Foram à tecelagem e nada. No outro dia saiu a nota policial que dizia que a moça havia sido jogada do trem por simpatizantes nazistas.

II

Uma visita inesperada

Alguns meses se passaram desde aquele trágico dia.

O Doutor Luvinstein nunca perdeu o hábito de ir todo o final de tarde à Estação da Luz, parar no mesmo lugar e ficar olhando para a direção de onde sua noiva sempre costumava vir, e ele permanecia ali por horas.

Um dia, na rotina de seu consultório, a recepcionista anunciou ao doutor que ele estaria sem pacientes o resto do dia. Ele se animou a sair e caminhar. Quando ia abrir a porta um vento frio entrou pela janela e uma sensação estranha lhe subiu pela coluna espinhal. Parou pra entender, virou-se e ali, sentado ao divã, um vulto lhe chamou à atenção...

Era Ester.

Como podia ser?

Mas era!

Sua noiva veio vê-lo. Ele ficou a princípio assustado, depois feliz, um pouco confuso, perplexo.

Ela pediu que não tivesse medo, pois precisava lhe falar. E disse-lhe coisas de sua nova vida, que ele parasse de ir espera-la na estação e que procurasse ser feliz com uma nova pessoa.

- Como é possível conversarmos? – Ele inquiriu.

- Porque você me prende a este mundo com a sua tristeza, sua saudade. Há um vazio dentro de sua alma; você não se sente completo, isso me permite vir, pois sua carência e incompletude abrem espaço para outro espírito.

- Outro?

- Sim. Qualquer espírito pode te alcançar. Uns por que você não os esquece, outros por que tem assuntos pendentes a resolver; podem se aproximar de você devido a esta lacuna no teu ser.

- Eu... Posso te tocar?

- Não. Você precisa me esquecer, para que eu vá.

- Ester, eu te amo tanto!

- Tente amar outra pessoa, você está sofrendo. Eu estou morta, e preciso de paz.

- Se eu me matar poderemos viver juntos?

- Não. É por isso que precisa me esquecer, Ioseph estava preso a este mundo por que tinha um assunto pendente comigo, juramos amor eterno e ele morreu antes de se casar comigo. Quando eu morri, ele pôde me encontrar. Mas a tua insistência para comigo está me prendendo a este mundo.

E a conversa durou horas até que, exausto e decepcionado Luvinstein permitiu que Ester fosse embora.

III

Novos Pacientes

Ester não apareceu mais. Ele disse que a deixaria ir. No mundo espiritual a palavra proferida é Lei.

Mas não conseguiu perder o hábito de ir à Estação e esquecer-se ali. Não mais esperava Ester, mas olhava o infinito, olhava as pessoas, imaginava quantas histórias cada transeunte teria para contar.

No consultório começaram a aparecer “visitas inesperadas” como a de Ester. Eram almas de pessoas que tinham um amor para resolver, uma dívida, um sonho não realizado.

O Doutor Luvinstein não ganhava nada com isso, não recebia um tostão, mas seu amor à Psicanálise ia além do material. Claro que era observado por seus novos amigos, por isso eles só apareciam quando ele não tinha ninguém para atender.

Ele dispensava a recepcionista, e tratava dos Espíritos tristes que vinham em busca de descanso.

Conseguiu convencer aquele antigo político de que seu melhor amigo não o havia traído;

Convenceu aquela antiga dama da sociedade de que seu marido não a envenenara;

Convenceu aquele rico empreendedor a perdoar as dívidas daqueles que ficaram vivos;

Conseguiu convencer assassinados a perdoarem seus assassinos;

Maridos e esposas a deixarem seus viúvos levarem suas vidas adiante; E assim Luvinstein se tornou O Doutor dos Espíritos.

IV

O Doutor dos Espíritos

Luvinstein se tornou um perito em fenômenos espirituais e os próprios “fantasmas” começaram a divulgar isso. Mas a fama do médico não ficou apenas no mundo de lá. Certa tarde dispensou sua recepcionista para que pudesse ficar à vontade com seus pacientes do além, mas ela resolveu ficar por ali para dar uma atualizada na agenda.

Minutos depois ouviu vozes e foi bisbilhotar por uma fresta na porta e viu o Doutor Luvinstein falando com “ninguém”, pelo menos no seu modo de ver.

Entrou e disse:

- Desculpe-me, Doutor Luvinstein, mas eu resolvi ficar e atualizar a agenda e ouvi o senhor conversando. Como sei que não havia ninguém vim saber se o senhor estava bem, e lhe encontrei falando com as paredes. Eu posso ajuda-lo?

- Olhe senhorita Vera, eu deveria ficar muito zangado, mas vou poupa-la de minha raiva se puder me ajudar. Já não agüento guardar este segredo. Entre, sente-se aqui.

E contou à srta. Vera tudo o que há anos já fazia: tratar de espíritos, o que ela relutou a acreditar mas por fim, acabou cedendo, devido a manifestações que ela via na sala.

- Doutor Luvinstein! Precisamos divulgar isso! Pense em quanta gente do lado de cá, no mundo dos vivos está precisando se livrar de espíritos que não vão embora; Que oprimem e atormentam?

- Eu já havia pensado nisso, mas um de meus pacientes disse que era perigoso mexer com espíritos maus. Eles são espíritos que atormentam, que assombram e são terríveis.

- Estarei ao seu lado, doutor.

E assim, a própria Senhorita Vera fez as divulgações e o Doutor luvinstein saiu-se muito bem. Ajudou famílias a se livrarem de espíritos acorrentados, pessoas oprimidas por alguma presença maligna, etc. Sua fama correu o mundo. Começou a ministrar seminários em universidades, dar entrevistas na TV, escreveu livros e o tempo passou.

Décadas de Sucesso. Décadas em que toda noite o agora milionário Samuel Luvinstein, que definitivamente se registrou com este nome e agora era casado com sua antiga recepcionista, dono de uma excelente mansão em São Paulo, nunca deixou de ir à Estação da Luz e perder-se em pensamentos e divagações.

V

O Conde

Chegamos aos dias atuais, o Doutor Samuel Luvinstein está com oitenta e dois anos, ainda na ativa, tanto no mundo de cá quanto no de lá.

Seu nome está em todas as grandes enciclopédias; é Prêmio Nobel da Paz; Embaixador da Onu; Uma lenda viva.

Por uma ironia do destino, o gigantesco palacete do Doutor Luvistein começou a ser assombrado. Terrivelmente atacado por um espírito furioso, o qual logo fez questão de se apresentar, Conde Wagner von Harten, cujo nome a dedicada Vera foi rapidamente pesquisar... O Conde era filho de alemães, viveu no Brasil até meados da Década de Sessenta quando morreu velho de dias. Não deixou herdeiros, não possuía parente e não fez testamento para que ninguém se apoderasse de seu patrimônio. Como resultado, tudo foi para os cofres do governo. A Mansão com os móveis foi muitas vezes casa de embaixadores. Muitos diplomatas já passaram por ela, até que o Doutor Luvinstein a adquiriu.

Agora estava às voltas com o Conde von Harten, que assombrou muitos dos embaixadores que habitaram ali, fazendo-os saírem e que com muito custo havia feito o governo desistir de sua posse.

Von Harten não deixaria o casal em paz e tratou logo de criar todo tipo de armadilhas para causar a morte deles.

Mas ele, que sempre ficou ali no palacete e nunca quis sair, não conhecia com quem estava lidando. O Doutor Luvinstein o via e pesquisando muito a fundo sua história, descobriu que o conde fora viúvo de uma mulher linda e maravilhosa, que com seu brilho e beleza enchia os salões da Sociedade Paulista. Desfilava nos grandes bailes e festas aristocráticas com seus vestidos milionários, era cobiçada pelos maiores magnatas do país e o amava como mulher alguma jamais amara um homem.

Morreu de câncer aos quarenta e cinco anos e o Conde se trancou em casa por três décadas e meia. Não visitava mais suas empresas e os acionistas vinham lhe fazer visitas periodicamente. Mas com o tempo, foram tomando muita confiança, até que não vinham mais e ele foi perdendo as empresas. Viveu o resto de seus dias consumindo os recursos que poupou durante a vida e que não pretendia deixar para ninguém. Morreu só, enquanto dormia.

Com estas informações nas mãos, ou melhor, na mente, o Doutor Luvistein tratou de encher a casa de retratos gigantes da Condessa. Em todos os cantos havia um. Sem palavras, sem argumentos, o Doutor Luvinstein foi atingindo o furioso Wagner von Harten no seu ponto fraco, a saudade de sua amada, a qual havia sido substituída pela determinação em expulsar qualquer possível morador de seu palacete.

O Conde havia esquecido sua amada por quem por trinta e cinco anos chorou, pois perdeu-se na gana de assombrar quem quer que entrasse em sua casa. Não se lembrava mais dos olhos verdes de sua Condessa italiana, cujos cabelos acobreados lhe emolduravam o rosto alvo e exótico, dono de uns lábios carnudos e de um sorriso que enfeitiçou a muitos homens.

O Conde, depois de muito quebrar coisas e investir contra o casal Luvinstein, que não tinha mais paz para dormir, pois até a cama flutuava; que não podia mais comer, pois a mesa virava pó derrubando todos os pratos e talheres no chão; que não podia mais passear no jardim, pois uma praga de pulgões e gafanhotos o havia consumido; que não podia mais sair pra consultar ou dar seus seminários, pois cada vez que tentava abrir a porta a terra tremia; estava agora parado diante da imagem de sua amada em tamanho real. O doutor foi tão caprichoso que perfumou as imagens com o perfume que a Condessa usava, o Conde se ajoelhou diante de sua querida e chorou e declarou toda sua saudade e seu amor e o quanto ela lhe fazia falta.

Esta foi a deixa para Luvinstein se aproximar e dizer:

- Conde Wagner von Harten, liberte-se, vá em busca de sua amada que o espera há tantas décadas, liberte-se das coisas que te prendem a este mundo, as quais já não lhe servem na nova vida.

O Doutor estendeu sua mão para o Conde e venceu mais uma etapa de sua capacidade de lidar com os espíritos; conseguiu pegar na mão do Conde, que se apoiou e levantou dizendo:

- Obrigado Doutor Luvinstein, por fazer-me lembrar de minha amada e ver que posso me encontrar com ela. Quanto tempo eu perdi.

- Não se preocupe Conde, o Sr. tem a eternidade para amar sua Condessa.

E o Conde partiu para sempre.

Luvinstein sentou-se no chão, exausto, com suas forças exaurindo. O contato foi muito grande, seu vigor já não era o de mais de meio século atrás. Vera o abraçou, sentanda com ele no chão.

Mais uma vitória, Vera. Preciso parar, do contrário serei eu a vagar por aí, perdido de você.

E assim o Doutor dos Espíritos se aposentou e terminou seus dias com sua querida Vera, tendo vivido uma intensa e gloriosa vida de Sucessos!

Danilo Macedo Marques
Enviado por Danilo Macedo Marques em 10/11/2006
Código do texto: T287269
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