POLTRONA VAZIA:

 

 

A poltrona continuou intacta, do jeito que você a deixou. Vazia, assim como eu fiquei todos os dias depois que você saiu.

Meu coração sentiu-se incapaz de abarcar a razão pela qual foi embora de forma furtiva e repentina. Todas as coisas aparentavam estar no lugar certo. Era como eu apreendia tudo à luz da figura de mulher, mãe e ‘dona de casa’.

Já crescidos, nossos filhos tinham iniciado o processo da desamarra dos laços. Faziam suas próprias escolhas. Tomavam seus próprios rumos. Logo, iríamos ficar apenas eu e você. Enfim, um novo e bom tempo para nós.

Não atino como pôde deixar tudo para trás por uma menina quase da idade de nossa filha. Aliás, a mesma de quando me casei. Eu era tão nova, tão apaixonada... Toda minha vida pautada sobre a sua e minha identidade se esvaindo de minhas mãos, de meu corpo, de minha alma.

Hoje, se me apresenta uma imagem mais precisa de nossa união. Tenho plena consciência. Mostrei-me absolutamente tola nesse ato de mesclar. Você exigiu e eu permiti. Foi exatamente o que aconteceu. Contudo, você teve o cuidado de se preservar. Permaneceu você. E ingenuamente, apesar de tudo, ainda cheguei a idealizar a possibilidade de um recomeço. Você, não. Fez traços coloridos para a sua vida e deixou para mim a sobra de um desenho cinzento: uma poltrona vazia.

Porque irrompe agora em minha porta: mal cuidado, camisa amassada, face cansada e carente. Quer voltar, é isso?

Coloca  tudo de maneira tão simplória, como se uma pedra caída no chão pudesse voltar para as minhas mãos. Milagre? Não existe.

Você não se lembra? Fui humilhada, reduzida a uma insignificância qualquer. Dolente, por meses permaneci mergulhada em profunda escuridão. Essa imagem, embora distante, ainda me desperta sentimentos dolorosos.

Precisei recomeçar: novos passos, novo olhar, nova escuta, novas emoções, uma vez que, por imensuráveis anos de minha existência havia me amoldado aos seus sentidos.

Hoje, depois de penosa caminhada, sinto-me enlaçada pelos doces passos da valsa da vida. Vejo a vida através dos meus olhos. Nunca mais através do seu modo de olhar, de escutar, de sentir. Despertei das trevas no exato momento do resgate de minha essência. Voltei para mim mesma.

Pensou que fosse eu a lhe atender? Não, não era eu, não aquela que conheceu.

Além do que, aquela poltrona que até ontem esteve vazia... não está mais disponível.

 

Obs:  conto fictício escrito em 2005, foi tema de interesse para um filme de curta metragem. Não levei adiante porque exigia uma burocracia um tanto complicada  e não me senti segura em dar andamento ao processo. Enfim...  

 







heleida nobrega
Enviado por heleida nobrega em 31/03/2011
Reeditado em 31/03/2011
Código do texto: T2881472
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