Lembranças da Usina

Lembranças da Usina

Trata-se de um lugar bucólico, localizado à margem esquerda do Rio Santa Maria, à esquerda de algumas quedas d’água e sombreada por uma bonita floresta de eucaliptos perfumados.

Meu primeiro contato com este paraíso se fez no ano de 1973. Eu com dez anos, fazendo uma visita à minha irmã Maria, que recém mudara para o lugar.

Naquele ano, seu marido havia sido contrato para trabalhar como operador na casa de força de uma geradora de eletricidade para o município de Colatina.

A hidrelétrica distanciava cerca de 7 quilômetros da sede do município. O percurso era feito por uma rodovia sinuosa e empoeirada de terra batida, por uns trinta minutos.

A parada ficava à margem direita do rio e a travessia era feita com canoa sobre o leito agitado pelas quedas pouco acima do porto.

A primeira casa, com duas janelas de madeira e no estilo antigo, de frente para o final da pequena ladeira, que era o elo entre o lugarejo e o rio, parecia esperar pelos moradores e visitantes do lugar, alegrando-se na sua cor branca, fazendo as honrarias da chegada. Era a casa de seu Acindino. Morava ali com sua esposa, uma filha e uma neta. Ainda no quintal, morava seu primogênito com esposa e duas filhas.

À sua frente, estava à casa de força. Era misteriosa e barulhenta. Som de motores e água por todos os lados. Quase não podia ouvir voz ali.

Era um casarão antigo de apenas um cômodo cheio de motores e chaves que, operados por três homens, em regime de escala, geravam a energia.

Localizada à esquerda de quem entrava no casarão estava uma escada de madeira que dava acesso à casa de máquinas da usina. Ali o barulho, o mistério e o medo aumentavam.

À frente do casarão, numa leve inclinação, havia o que os trabalhadores chamavam de canal. Na verdade eram dois canais, feitos de alvenaria para represar água e depois movimentar as turbinas da usina. Um pouco mais adiante, moravam seu Manuel e dona Maria, dois irmãos idosos que não haviam casado e passavam seus dias, cuidando um do outro.

Para chegar à casa deles era necessário atravessar os horripilantes canais em pontes de curtas de madeira gasta, acompanhado pelo som misterioso de água corrente. Eram canais escuros e profundos! Para aumentar o clímax da travessia, havia a história da morte de um neto do morador mais antigo que, menino, se afogara naquelas águas.

Voltando à usina, um pouco mais à frente, à direita, estava o caminho que levava à casa de minha irmã. Era um pouco inclinado, de terra amarelada e escorregadia. À esquerda de quem chegava, era todo ladeado por eucaliptos cheirosos. À direita, uma perambeira que dava no rio. No final do caminho, uma bifurcação: à frente estava um pasto, à esquerda a entrada para a casa de Maria. Era um caminho com flores que se encerrava num modesto, porém coloridíssimo jardim. Enfim a chegada ao clarão com uma frondosa mangueira e o velho paiol entre outras árvores frutíferas.

A casa também era simples, mas arejada e grande. Na cozinha um fogão à lenha, próximo à janela. O telhado alto de onde se podia avistar de vez em quando, intrusas aranhas caranguejeiras.

No interior da casa, falando alto ou às vezes cantando, encontrava-se Maria e seus dois filhos: Antonio José de nascimento, em homenagem aos avôs e o bisavô materno, chamado por todos, carinhosamente, de Toninho e xodó dos Pereira, especialmente da tia Nei. Tinha olhos escuros e cabelos lisos muito loiros, a pele branca e as faces rosadas e Sandra Regina, muito parecida ao irmão, com cabeleira loira e cacheada. Neles estava a realização dos sonhos de Maria. O marido Paulo pouco parava em casa. Tinha seus horários na usina. Dia ou noite. Trabalhava por escala.

Maria cuidava da casa, das crianças e do jardim. Costurava também. Em princípio só para a família, mas quando descoberta, acumulava as funções de “modista” e de costureira para toda a região.

Nesta época, chegou para aumentar a família, o garoto Carlos Renato. Fui eu quem escolheu o nome. Um lindo bebê de olhos arredondados e escuros e muito chorão.

Vivia uma vida simples, mas como há muito não se sentia muito feliz. Com o marido nesse emprego, comprara móveis novos, a casa confortavelmente mobiliada e as crianças livres brincando no imenso e cuidado quintal. É, Maria estava muito feliz! Nunca me disse, mas sei que, a época em que morou ali, foi a mais feliz e produtiva de sua vida.

Em quase todos os finais de semana, Maria recebia visitas. Ora eram suas irmãs, ora sua mãe, uma, porém, era sempre esperada: sua cunhada Valdete. Esta a visitava todos os finais de semana. Ia corujar os sobrinhos e buscar o cheiro da família que nem sempre podia ver. Trabalhava na sede do município e os pais e os irmãos moravam em lugar de difícil acesso. Satisfazia-se com a família do irmão.

Ah! Tanta paz no lugar! Som de água, de pássaros diversos, do riso das cunhadas e das crianças! E cheiro de natureza. Um paraíso!

Os filhos foram crescendo e chegou a hora de ir para a escola. Primeiro foi a vez de Toninho. Depois a Sandra e por último, Renato. As crianças moravam com tios e com a avó materna.

Algumas irmãs de Maria se casaram e passaram a ir menos ou nunca à sua casa. Apenas Valdete continuava com a freqüência de sempre.

O tempo foi passando, as crianças e os primos crescendo e, então, veio a época dos finais de semanas com os adolescentes na usina. Para esses, a usina era como reduto de inverno, onde passavam férias desta estação.

Nesta época havia sido providenciado um caminho novo que levava à usina, porém não menos desafiador: a canoa fora trocada por uma longa e solitária pinguela. Em seguida, vinha a companhia dos cachorros da vizinhança de quilômetros , eram assim chamados porque suas casas distavam quase quilômetro umas das outras.

Maria voltou a ter a casa cheia. Filhos, sobrinhos e amigos dos filhos eram atraídos pelo rio. Os domingos eram de horas nas águas da cachoeira e do rio.O som voltou a casa de Maria. Animação de vozes, risadas, cheiro de churrasco e de natureza. Mas como já disse o poeta, o tempo não pára. De novo a casa começa a ficar vazia.

Os filhos fora, sobrinhos casando e Valdete também. Paulo chega à aposentadoria. Não pode mais permanecer na usina. Virá um novo trabalhador e morador para o paraíso.

Paulo e Maria se mudam para a sede da cidade. Na mudança, além de todas as conquistas permitidas pelo trabalho, lá na cabine do caminhão, encaixotadas num cantinho do coração de Maria, estão as lembranças do tempo na usina. Maria sabe que pode viver o tempo que for,mas essas lembranças serão guardadas com as cores e o cheiro preservados. Isto para que seus netos, sobrinhos, bisbinhos e bisnetos saibam que houve vida e deliciosas lembranças da usina.