Uma rebelião no cárcere

O começo do fim

Naqueles tempos era feliz. Fumava de ervas medicinais e tranquilizantes, das quais, agora, não me lembro o nome. Eram tardes alegres, envoltas por aromas e espasmos dominicais. Era o imperfeito que considerava perfeito, único e essencial naquele instante.

O sol me queimava como a uma binga forquilha e abandonada aos pés do mendigo faminto e sedento por um trago; um dependente químico da pior espécie. As ruas eram tortas, minha face obtusa, minhas mãos doloridas e minhas palavras ferinas e desencontradas.

Algo diziam no todo, em síntese, mas nada significavam a quem escutava, ao invés de ouvir. Foram tardes, noites, madrugadas, infernos, céus e outubros. Ó mês decadente (!), se pudesse excluir-te de tudo, da vida e de mim. Donde nasceram os mais sinceros amigos e os mais destrutivos amores.

Ao fim da primavera, sambavam as mulatas, as loiras, as morenas, as Lorenas, Carlos e Saltimbancos. Foi quando, pela primeira vez, vi-me como Narciso, refletido no semblante do mar e misturado aos grãos de uma praia de cinzas e bundas.

Descobri-me por inteiro, como fosse uma serpente a libertar-se de sua antiga pele. Agora era peçonhento, uniforme e desprezível. Eram Satã e Deus em meu sótão gritando, como crianças indefesas e molestadas.

Sabia que o fim era próximo, rápido e indolor, e busquei a mais seca das poesias em meu coração de brinquedo. Era como se deixasse ao mundo - de herança - dores, alegrias, vida e verve.

Ferveu-se, pois, dentro de mim e pra fora de mim, a idéia, la parola. Fervi, era uma panela de pressão; explodi; gritei; ressuscitei; agredi; emergi das cinzas praianas, dos seios das baianas, das vaginas das prostitutas - Era quase um deus em meu ser límpido e falho.

Era quase e incompleto, como comecei e ando, e como terminei. Nada mudou, a não ser, pela maneira de ver, ouvir e atuar.

Daí que decidi pela liberdade, e a morte da raiz que me criara de pudores e sacramentos. Encontrei-me ao avesso e gostei do que vi. Do contrário, era uma constante luta por um incerto e desconhecido paraíso de elucubrações profanas.

Como me decidira (?), já se sabe que foi cantando apenas o fluxo do inconsciente, assanhado por neblinas, sonhos e fomes; grito de minh’alma.

Portanto, no hoje, digo paulatino e rasteiro, divagando meus versos prosaicos, como num diário, as verdades que ocultei pela barreira do consciente coletivo. Sem partido, religião, escola, ou padrão, lanço-me no núcleo incandescente de minha idéia sonora e transcendente.

Nessa alçada, qualquer condução me basta, nenhum lugar me resta. Anseio o gole de água nova, enquanto minha veia funérea se entrelaça a si mesma, como um cordão de três laçadas.

O sangue, disperso, espirra e inunda minha estrada de costelas mil. É então que mergulho, absorto, nas profundezas do meu ser. A face, de aparência uniforme, se mostra fragmentada, como os pixels que juntos e à distância reproduzem a imagem perfeita.

Aí encontro o medo, as máscaras; o amor, as personas; o ódio e as coisas qu’inda não vejo, mas julgo existir.

As máscaras e falácias culminam no todo. Ali estou superficialmente. Agora, estou como sou.

De fora sou um suspiro de sono e fome, e os ruídos de rodas que me batem e carregam os corpos fracos, as mentes mortas. Volto logo, quando um anjo ferido, com suas asas negras, cai sobre minhas mãos e, por mim, fala:

"Estou

e não sou.

Me viro

e transcorro,

por toda a noite,

sob bingas de cigarros."

Recebo um toque irreverente e o anjo se afasta. O perfume o campo expele, como minha virilha vomitando meu cheiro. Meu suor e meu sal fecundam em rostos, gostos e jeitos a primeira visão: o medo, travestido por máscaras, que fingem não sentir os prazeres da morte.

É noite que não há o que fazer, senão comer, deitar e dormir, esperando que a chuva traga a sentença e liberte a essência. A máscara joga-me de joelhos, a implorar o último perdão e única chance, para tentar de novo, como se Cristo me guiasse.

E enquanto esses calores e sussurros me tentam e me perseguem, nasce uma segunda visão: o amor, configurado nas personas, que são como o caráter e suas derivações, que me alimenta e sustenta, enquanto me faltam as palavras de sentido e importância.

Eis que surge, irmamente e siamês, o ódio gritante e pulsante, como meu coração acelerado de jovem bebendo o mundo. É por este, então, que explode toda veia e idéia; o pensamento em língua e tinta.

Vida

constante;

argila.

Ginga,

mudança

e espaço.

Liberdade

e grito;

espelho

e contraste.

La ragazza

Isso!

Acorde-me, amor.

Surpreenda

meus devaneios.

Estou a teu lado.

Tua alma

escorre

e chora

em meu peito

e ressuscita

o que era sólido,

e agora, carnal.

Venha!

Molha-me

e diga-me.

Isso.

Com teus cabelos,

imensos,

negros.

Ó Dama!

Como tentação vens.

Desafias amizades

e estimula-me pela manhã.

Dama da Luz!

Dama em êxtase!

O fim,

que devagar é concebido.

Ah!... Hoje é uma boa noite para se morrer. A lua paira sobre a cidade, como minha alma vagueia, guiando e alumiando-me a idéia; ela leva-me junto às coisas das quais não me recordo o nome. O satélite surpreende, ao clarear após as lágrimas abundantes e agressivas dos loucos verões que se leva aqui, onde a guerra de cores continua.

Meus olhos, o seu movimento acompanham. Gira, torcem e estalam, assemelhando-se às estrelas, que esboçam um sorriso franco e jocoso de quem geme de dor e finge o alívio.

Ó! Junto às coisinhas, a lua, a alma. A alma da lua. A lua na alma. O olho, o farol. O choro, a chuva. Tudo se confunde e se afunda na confusão de nuvens negras que, como fumaça, embaçam e travestem de ilusões a luz clara e evidente dos sinais de que me sirvo.

Exímio contador me torno, ao desbravar forte e dúbio, as barreiras do inteligível e certo, que assassina o espontâneo e natural. O que se sente e é tão jovem. Encontro a negra floresta que jaz sob o escarro dos mortos da ilha da ilusão. Lá, há folhas secas, vidas secas e gracilianos.

Ramos que se misturam em campo e orvalho. Lua cordequeijo. Fazendas, amor e beijos. Bêbados. Gambás e pombas flácidas. Olho-me no pântano inóspito. Imóvel me lanço, e busco o mais aterrorizante mistério.

Alma minha, meu ser errante. Cacófago e vazio. Fome das divinas tetas. (Ai! Que me perco!) Me conserta, me endireita. Alma, cândida e sábia.

Grito, canta o espírito. Rápido e incisivo, e contaminante como o espirro das gripes de que já não se lembram. Já cansado está o corpo. Máquina suja e oportuna, que tenta trazer abaixo as portas que percebem e sentem.

A alma reverbera sádica e louca. É como um adolescente na primeira transa, alçando caminhos densos e longínquos, munido de força, juventude e inexperiência.Daí. Da busca, então, conhece e sabe, e dribla e engana a máquina lógica e previsível, acendendo os faróis e ascendendo ao paraíso de palavras sãs.

Os faróis guiam os passos dos braços pelos pastos de produtos de celulose. A caneta é como um navio, desenhando os mares das pautas, para encontrar nesta ilha, o tesouro escondido; o mistério e o fazer. Ao desembarcar, se sente a água e espuma; os pés jazendo na areia. Nesta ilha se anda e se procura com o mapa, as pautas, o livro, o baú de mil ouros, mil tolos, mil e uma faces.

Quando o baú sua boca abre, emite o brilho da verdade, que ofusca, incendeia e derrete o aço do amor cristalizado. A lágrima corre à boca, ao pescoço e morre pelos poros da epiderme, irrigando o solo da alma e afogando a ignorância da carne.

Lava, tinge e embebeda. Venha, lágrima! Vá! Vá, por que voltas? Não me faças rir. É tão bom e passageiro. Vais me deixar, eu sei. Mas que bom que estiveste aqui. Limpa essa mentira e dor. Afoga-me nas três visões. Agora vejo o que sou.

Reflito em mim mesmo. O mundo em mim, que externo também é. E compõe. E faz parte. E nada mais sou, a não ser parte do todo, como em mim há partes e o todo que justifica por ser fragmentado. Um estalo, logo se escuta. Treme o chão e cai o leito. Lá não mais deito, mas já me percebo sendo expulso do teu zelo, ressurgindo de meu pântano e dos profundos desejos.

A chuva assusta e desce, sem cerimônias ou qualquer pretexto. Sem precedentes, vivaz, me acelera o peito, me injeta o frio, e o pavor de poder morrer logo abaixo da favela que ameaça o mundo de baixo, que se compra e vende minha alma e meus demônios.

A chuva fere a lua, fere a alma, afeta a calma. Um tropeço na corda bamba. As mãos que não seguram, nem falam e nem dançam. Morre tudo, em mim se afoga a poesia. Nasce o eu, destrói o caos e instável do que surge e não fala, do que é, como se sempre existisse.

A Lua, suas crateras, lá me perco e me transformo. O espaço, versátil e metafórico, se contorce e me devolve. Minhas vidas, as visões gritam, cantam, mas me trazem às barreiras dos vendáveis, aos corredores reto e uniformes.

Estou de volta, mas, póstumo, deixo o tesouro de artífice. O mistério é não saber, mas assimilar; Ecce o valor.

Raul Furiatti Moreira
Enviado por Raul Furiatti Moreira em 20/04/2011
Código do texto: T2920317
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