Dignidade

Ia-me pela rua estreita da imponente praça. Andava a contar os passos, bem devagar, aproveitando as últimas gotas da chuva que caía. Passei pela praça_ há dias inauguraram aquela nova, e exótica, decoração: uma galinha! Aquela criatura de reconhecimento improvável havia recebido devota homenagem. Bustos de coronéis, estátuas de heróis_ e mesmo de animais que tivessem de guerras, ainda vá lá. Mas uma galinha? Aquilo me parecia absurdo... Cheguei a pensar "Absurdo nada, é apenas a loucura de mais uns poucos". Porém a galinha não me saía da cabeça, e nem sairia daquela famosa praça.

Detive-me um momento diante da estátua, observei-a com cuidado, desconsolada. Minha incoformidade permanecia. Pensava nas famílias que tanto necessitam de abrigo, comida, dignidade. As escolas urgem reforma, a política necessita de honestidade... e aquela galinha ali, superior, protegida por cercas e guardas.

Minha inconformidade permanecia. De repente observei que, sobre a cabeça da galinha, havia dois pombos. Eles connversavam calmamente, sem se darem conta de onde colocavam os pés. Espantei-me muito quando me dei conta de que entendia tudo o que falavam. Como aquilo era possível? Lembrei-me de um filme que assisti, há muito esquecido... Dr. Dorito? Durico? Dr. Dolittle, o médico que falava com animais. Jamais pensei que aquilo pudesse, algum dia, acontecer.

- É, caro amigo, vamos de novo levar nossos amigos petistas ao poder.

- Vamos? Eles foram por sua conta... Nossos parentes (diga-se de passagem derrotados tucanos!) é que levaram a pior. Essa é a verdade.

Ainda eu permanecia estarrecida. Dois pombos conversando sobre política, e eu entendendo o que diziam. Pombos, conversando... e em cima da galinha? Ainda agora aquilo parece-me absurdo. Tanto quanto a galinha.

- E continuam as propinas, o valerioduto e a hipocrisia. Nosso exemplar administrador permanece alheio a tudo quanto lhe acontece no governo.

- Pudera! Quatro anos de omissão e mais quatro de robalheira.

- Robalheira, que nada! Dinehiro para festas, fazendas, iates...

- Galinhas!

Galinhas? Então aquelas duas criaturas tinham plena consciência de onde tinham os pés.

- Galinha sim, meu amigo. Aonde está a dignidade do nosso povo, que elege tais hipócritas para nos representar?

- A dignidade está na galinha! _ Pensei alto.

Neste momento, os dois se entreolharam assustados e me olharam em seguida, com desconfiança. Também eles não acreditavam que aquilo poderia ser verdade.

Seguiu-se um minuto de silêncio. Por fim, um deles, mais revoltado, abriu as asas e olhou-me com raiva:

- Pois que aqui permaneça a dignidade desse povo acomodado!

E, distanciando as pernas, deixou cair aquela mancha escura que lesionou a superfície da estátua.

A dignidade está na galinha!

Ana Harkin
Enviado por Ana Harkin em 16/11/2006
Código do texto: T293101