Solidão

Amaro ficou assim, sentado na velha cadeira no meio da sala nua. Os móveis, com o tempo, foram desaparecendo, velhos, inúteis, eram jogados no fundo do pátio para que a intempérie os corroesse sem deixar vestígios... Mas a cadeira não, ela resistira aos solavancos do tempo. A noite morna transcorria, ele embalava-se molemente, um fino fio de suor empapava-lhe a camisa de tergal. Esperava sua velha companhia, aguçava o ouvido tentando escutar o som característico de um corpo que se arrasta por entre a madeira. Ela entrava pelo buraco do oitão, não podia vê-la, nem sequer sabia o que era, mas sua presença trazia-lhe uma sensação de paz, de segurança. Lembrava-se nitidamente da primeira vez. Rosalva tinha decidido ir embora, era um fevereiro abafado como este. A mãe não tinha aprovado o namoro, muito menos o casamento e o nascimento de Verônica parece ter aguçado na esposa um desprezo imenso pelo marido. Contrariando as expectativas que sempre acompanham a gravidez, a menina tinha nascido diferente, os olhos amendoados, de um azul profundo e calmo, o pescoço largo, dedinhos rechonchudos e curtos. O médico tinha explicado que não era doença, era síndrome. Prá Amaro tanto fazia. Ela era bonitinha e gostava de ficar em seu colo. No entanto, a esposa estava enfurecida, culpava-o, dizia que ele era tão incapaz que até a filha tinha nascido torta. Amaro suportava calado. Sempre fora calado, por isso o casamento tinha sido surpresa para toda a vila. Ele era funcionário público de carreira, moço, um bom partido, enfim. Se não gozava de beleza estonteante, sua vida regrada, sem vícios, a possibilidade de ascensão profissional tornavam-no interessante. Mas Rosalva tinha cansado de esperar. Nos oito anos de casamento, mais dois de noivado, o marido não havia galgado uma promoção sequer. O Jonas, bem mais moço no escritório, já tinha sido nomeado chefe de seção, enquanto ele continuava escriturário, na sua mesinha de pinho vagabundo, gasta pelos anos.

- Amaro, não tem quem te agüente! Eu quero é viver mais. Tô cheia dessa vidinha besta. Desta vila pobre onde não dá nem prá pôr um salto que a gente se enterra ou no pó ou na lama. Tu és muito parado. Da mesa da repartição para esta cadeira de balanço, que já fez até um calo no assoalho da sala...

Depois de tantos anos ainda lembrava com exatidão as palavras ácidas da mulher. Lembrava também do cheiro bom que tinha a filha. Gostava de enfiar o rosto entre seus cabelos louros e aspirar aquele cheirinho de gato novo que exalava de sua pele. Lembrava ... Não, não lembrava, sentia ainda aquele enorme peso no peito que fazia com que andasse curvado para frente, sempre mirando o chão, prá não ter, nunca mais, que olhar nos olhos de alguém e ver dureza igual a de Rosalva, nem aquele mar encapelado que jorrava dos olhos da filha ao ser arrastada pela mãe pela ladeira de cascalho rumo ao porto.

Foi naquela noite, quando a perplexidade pesava, que ouviu pela primeira vez o ruído de algo que se intrometia pelo velho forro da casa. Ouvido atento, por um momento esquecia a dor que lhe rasgava o peito, por um momento parou para ouvir, as lágrimas abundantes cessaram. Silêncio dentro e fora da sala. Novos ruídos, como se aquilo estivesse se acomodando. Atenção presa aos ruídos tirava de foco o sofrimento e ele ficou ali, esperando. Ouviu chiados, cicios... Ficou assim, imóvel, anestesiado. Quando rompeu o dia, seus olhos já estavam secos, o barulho no forro cessara e Amaro retornou à repartição sem nada dizer, sem que ninguém, da sua boca, tivesse ouvido qualquer suspiro que remetesse à separação. Em casa a mãe retomara seu posto, cuidava de suas camisas, engomava golas, passava a única gravata, surrada e disforme, de cor indefinida, o que facilitava, já que combinava com suas três camisas de opalina. Toda a noite ficava acordado, sentado na velha a cadeira a esperar sua companhia. E ela sempre vinha. Acostumara-se aqueles ruídos noturnos. De certa forma, eles garantiam concretude à sua vida tão miúda.

Os anos passaram sem que Amaro se desse conta. A doença corroera a mãe lentamente. Um dia ela simplesmente não levantou e pela primeira vez, em vinte e cinco anos de trabalho, Amaro não foi à repartição. Na sala pequena velara a mãe. Alguns vizinhos compareceram, a freira veio fazer uma oração e quanto mais a madrugada avançava, mais Amaro ficava só. Até que ficaram os dois, ele e a defunta sem que, como em vida, um tivesse o que dizer ao outro. Só aquele estranho visitante vinha fazer-lhe companhia. Ruídos, chiados, cicios, e depois aquela estranha sensação de conforto, de cumplicidade.

Só na velha casa, já não engomava as golas puídas, comia pouco, a terra no assoalho estalava quando se mexia na cadeira de balanço. Assim, seu único vínculo com o mundo dos vivos eram os ruídos no forro. Estava tão acostumado a isso que começou a conversar com aquele barulho. Pela janela aberta, Assunta, sua vizinha de cerca, observava alarmada o hábito do velho de conversar sozinho, por certo estava endoidando de vez.

Mas esta noite estava sendo diferente. O silêncio da madrugada que já ia alta era entrecortado pelos ruídos de sapos e grilos. Na pequena sala não cruzava uma brisa sequer. Era como se o tempo tivesse estagnado. Amaro remoía suas lembranças mas seu interlocutor desaparecera. O dia foi nascendo devagarinho. Uma fina bruma envolvia a paisagem. Na rua sonolenta, os primeiros mineiros já se dirigiam para o trabalho. Insone, Amaro levanta-se e toma a direção do velho porto sem fechar portas ou janelas, o tamanco rústico de madeira e couro cru produz um estranho ruído ao se arrastar pelo chão . Sentado sobre um resto de escada observa atentamente a névoa que se dissipa, o sol a lançar seus primeiros raios sobre o dia. Nunca a solidão tinha-lhe pesado tanto. De súbito, sente que uma mão pousa em seu ombro. Volta o rosto e depara-se com um par de olhos amendoados de um azul tão profundo como se tivessem o mar dentro deles. De novo a paz o invade e tudo o que consegue é se indagar onde tinha visto uns olhos assim...