Diário da ceifadora

A Arte da viajosidade faz as mortes se encontrarem.

Olá, querido folgário. Devo fazer uma pequena correção hoje no que disse a respeito de ser a única. Existem outras, mas poucas ceifadoras propriamente ditas. Encontrei-me com uma que tinha dois corações: um não batia, e outro que não podia ser sentido ao toque. Ainda me intrigo com o que é ter um coração, mas não nego que as outras colegas possam tê-lo. Existem poucas ceifadoras, mas muitas colegas de trabalho. Uma delas, com dois corações. Um que não bate mais, e outro que ama, cuida, e se interessa tanto ou mais que eu pelos humanos (não que eu me importe com eles, o que deve ser uma de nossas diferenças). Um dia nos encontramos, a morte sombria do mundo cinza, e a morte de cabelos em vermelho-vivo, ambas conscientes que o homem é quem destrói e desequilibra o mundo. "Deveríamos tirar nosso rótulo mortal", discutimos sobre isso. Queríamos dizer que não lidamos com a morte, e sim com outro tipo de vida. "Mas humanos não entendem isso, sua compreensão é limitada, rasa, pútrida e distorcida." disse eu, do fundo da alma (não que eu tenha uma exatamente. Mas seria a expressão mais interessante para descrever). "Humanos precisam apenas de paciência e compreensão. Eles não entendem, por isso temem. Eles não entendem, por isso destroem, mas entenderão um dia e irão mudar". Creio ter sido isso o que ela respondeu. Do fundo da alma. Acho que ela tem uma, já que já tem dois corações. Ali estávamos, naturezas mortas rodeada de vida carnal, mortal. Vida que até a morte sonha em viver para "o sempre", sem saber o que "o sempre" é exatamente. Alí estávamos, opostas: a morte sombria que se espalha em cinza e a morte lúcida que espalha seus longos cabelos em vermelho vivo. Diferentes, e talvez sendo a mesma coisa. De lá, voltamos aos trabalhos iguais, feitos de formas diferentes, com humanos que se dizem irmãos. Humanos são diferentes e iguais ao mesmo tempo, interessante...não que isso me importe muito.