O Incurável.

O homem vinha em alta velocidade pelas ruas de uma cidade interiorana, montado em seu carrinho de cavalo, chicoteando o pobre animal como se o mesmo não sentisse dor.

O homem era jovem, usava óculos escuros de camelô, estava sem camisa, calça jeans e ia em pé sobre o carrinho, feito gladiador em batalha, aparentando entorpecimento por pinga ou coca. Para tanto, estava muito agitado e imortal.

(No “Bar da Regina”, onde estivera minutos antes, queria bater em alguém, aleatoriamente; queria simplesmente bater... Sentia-se muito forte...).

Minutos depois, ao dobrar a esquina de forma lancinante, não se deu conta de que um veículo vermelho, conduzido por uma jovem recém-aprovada no exame de habilitação, vinha na direção contrária.

Ato contínuo, carroça e carro se chocaram lateralmente, fazendo com que o homem fosse lançado ao ar como numa catapulta medieval e caísse de costas no chão, num tombo feio, feito jaca podre, emitindo um som oco de baço estourado, porém logo se reerguendo num sobressalto, a correr atrás do cavalo em disparada, o qual arrastava a carroça pelas ruas da cidade pequena. A cidade, a título de elucidação, era Miseirópolis, num rincão qualquer, e isso se deu no princípio do século XXI.

O homem correu dois quarteirões atrás do animal, conseguindo contê-lo, situação que fez com que algumas pessoas ficassem atemorizadas, recostadas nos muros quentes, abraçando seus pertences.

Enquanto isso, a moça do carro vermelho permanecia estupefata, gesticulando, gritando, se esbravejando, olhando seu carro avariado, descontrolada, falando ao celular e chorando, tudo ao mesmo tempo, como é comum às moças em acidentes automobilísticos análogos.

Nisso, pessoas foram se aglomerando.

Alguns garotos, saídos do colégio, riam despudoradamente, apontando para o ocorrido. Eram jovens demais, o que é perdoável.

O sorveteiro da esquina via tudo com olhar esbugalhado, pensando num possível aumento de suas vendas, devido ao fervor do clima. Mas ninguém pensava em sorvetes, ao menos naquela hora.

Por outro lado, sentado num banco de praça próximo, um senhor nonagenário, impassível, a tudo perscrutava, calmamente.

Perguntado por um transeunte curioso sobre o que de fato acontecera, o velho, com olhar vítreo, boca “múmia”, se limitou a responder:

“Meu médico disse que não tem cura!

Mas que não se pode parar..., não se pode parar...

“Entre ignorância crônica e velhice, meu filho, coisa em comum é o incurável, o incurável...”.

O curioso, diante tal resposta, vendo o velho como um senil, foi-se logo saindo de rabeira, sem muito entender...

Vinte e sete minutos após o acidente, uma viatura da polícia se aproximou, vagarosamente, sirenes ligadas, imponente, mas àquela altura de nada adiantaria; o carroceiro havia fugido e, ademais, mesmo que fosse detido, logo se livraria solto e, por fim, “actio civilis ex delicto”, não teria sequer dinheiro nem patrimônio para arcar com o dano ocorrido no carro vermelho da moça, à qual agora estava ainda mais furiosa, amparada pelos milicianos, mais vermelha que o próprio carro, que era novo e do pai...

Enquanto isso, a vida prosseguia inexoravelmente, entre gritos, prantos e risos, como não poderia deixar de ser, incurável, incurável...

SAvok OnaitSirk, 12.05.11.

Cristiano Covas
Enviado por Cristiano Covas em 11/05/2011
Reeditado em 11/05/2011
Código do texto: T2964258
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