Ele nunca foi a Porto Alegre

Descobri muito cedo que meu país era grande, embora não soubesse o quanto. Meu pai me falava das suas viagens pelo Brasil e eu ficava sonhando quando iria viajar com ele. Sr. Oswaldo velho falava de suas andanças pelo Sul e pelo Nordeste. Dizia do churrasco de carneiro do Piauí e da piranha que pescou por lá tão voraz a ponto de quase morder-lhe a mão. Foi salvo pelo amigo que lhe deu com o remo nos dedos antes dos mesmos tocarem o peixe sanguinário. No Maranhão, conheceu Imperatriz. Na Bahia tomou sorvete caríssimo na esperança de ver Marta Rocha aparecer na janela de casa. Da do Farol da Barra avistou o mar. Era preciso navegar. Foi de navio à Santa Catarina. Por lá teve de nadar numa enchente, enfrentar frio... O encanto, porém, foi inegável. Tanto em Blumenau quanto em Florianópolis. Para quem me conhece, é fácil entender minha paixão por viagens, minha mania de contar donde perambulo. Deve ser culpa da genética.

Meu velho viajou bastante enquanto jovem. Eu não era nascido. Tão logo aprendi a falar e entender a voz dos outros, passei a navegar nos seus relatos de viajante. Nunca entendi por que não chegou ao Rio Grande do Sul, uma terra de gente que sempre admirou. Tanto falava do povo gaúcho (principalmente das gaúchas, sempre tão lindas). Eu perguntava e ele mesmo não sabia como não havia chegado até lá. Fui crescendo e lendo Érico Veríssimo. A vontade de ir ao Sul aumentava. Tive uma professora de Inglês na sexta série chamada Sandra. Era uma mulher alta, bem acima da média das mulheres que conhecia até então. Dessa altura só mesmo gaúcha. Barbaridade! Era de Uruguaiana, na fronteira com a Argentina. Gostava demais dela. Eu era alto, mas ela era maior ainda. Conversava comigo e outros apressadinhos enquanto os demais faziam as tarefas. Era muito bem humorada e seu sotaque me encantava. Será que todas na sua terra seriam assim? Tinha de conferir.

O tempo passou... Fui às Minas Gerais várias vezes. Uma delas com meu pai, minha mãe, irmãos e tio Orico. Passamos um belo fim de semana em Poços de Caldas. Conheci também São Paulo, Espírito Santo, Bahia etc. Mas ainda faltava o Sul. Meu pai já não saia de casa para viajar. Estava ficando cada vez mais doente. Agora quem contava as histórias era eu. Tentei refazer seu percurso. Não consegui. Ainda não conheço o Piauí. Na realidade, conheci alguns lugares por onde ele não andou. Entre eles, o tão desejado Rio Grande do Sul. Foi em 2009. Meu velhinho já descansava eternamente. Voltei do extremo meridional do país. Agora as pessoas já não eram tão mais altas do que eu. O frio não existia posto. Era janeiro. Chimarrão não tomei. Nem comi churrasco. Conheci lagoas, as maiores do país. Vi paisagens diferentes. Nem sabia que chegaria a Porto Alegre. Foi uma surpresa no percurso. Fiz um roteiro pelos pontos turísticos e me detive no bairro Beira Rio. Não poderia deixar de conhecer a Fundação Iberê Camargo. Era um lugar incrível. De arquitetura belíssima e arrojada. Um prédio condizente com a natureza do pintor de cores tão fortes, como forte é essa terra de fortes e bravos. Forte também foi meu pai e forte estou sendo eu diante do teclado. Queria contar para ele do que vi. Entregar-lhe um presente e ouvi-lo dizer: "Você fica gastando seu dinheiro...". Ele balançaria a cabeça e olharia para o presente. Lembraria do passado e, no breve futuro de um instante, diria: "Você tem de pensar no dia de amanhã. Fica gastando dinheiro. Depois fica todo enrolado". Eu sorriria e tentaria apanhar o presente de volta. Tola tentativa. Ele já estaria muito bem preso em suas mãos cuidadosas.

Nunca consegui olhar o rosto do meu pai quando guardava os presentes no armário, o lugar das coisas preciosas. Acredito que fazia isso com um leve sorriso de gratidão. Um dia, descobri cada bilhetinho dos filhos guardado a sete chaves entre os seus pertences. Lá, por detrás das portas cor de cerejeira, não encontrei nenhuma cuia onde pudesse tomar chimarrão. Nenhuma bombacha ou poncho. Nem mesmo um chapéu de vaqueiro dos pampas. Encontrei relíquias simples daquele homem que soube valorizar seus descendentes, seu verdadeiro tesouro. Hoje, lembrei-me dele e acabei por não falar quase nada de Porto Alegre, o motivo primeiro de minha escrita. Bah! Falei do nosso saudoso niteroiense escolhido por Deus para ser meu pai na Terra.

Oswaldo Eurico Rodrigues
Enviado por Oswaldo Eurico Rodrigues em 15/05/2011
Código do texto: T2970825
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2011. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.