SANGUE, BAUNILHA E LÁGRIMAS

Um homem de barba negra, 1.80m e olhos negros matou a própria mulher. Mas não é que matou assim, normalmente, como qualquer assassino passional. Não. Ele a matou com crueldade e isso é que mais espantou toda a família.

Eles viviam relativamente bem, claro que havia algumas brigas mas de maneira geral a relação estava bem estabelecida. Num domingo à tarde, o homem estava com fome e foi à cozinha abrir pacote de biscoitos de baunilha. Como quase todas as embalagens, era muito difícil abri-la e ao tentar usar uma faca muito afiada para ajudar, cortou o dedo profundamente. A dor veio intensa, mas muito mais importante foi a raiva que se assomou daquela pobre alma. Um ódio imenso, uma raiva terrível e descontrolada e isso o levou a ir até o quarto onde dormia sua mulher e o fez espancá-la até a morte. A face da mulher tornou-se irreconhecível, tamanha a fúria. Pode-se dizer que ela havia sido atacada por um animal muito forte, um gorila, um chimpanzé, tamanha era a violência das marcas.

Assim que passou a fúria, coisa de 2 minutos, ele voltou a si e congelou. Não conseguia reagir, não conseguia mover um músculo sequer, ele simplesmente travou. Ficou travado por uns 10 minutos até que repentinamente conseguiu mover-se, saiu finalmente do transe pós-fúria. Ele foi até a cozinha, e começou a comer os biscoitos de baunilha, a sensação era muito estranha, depois do segundo biscoito ele começou a entrar numa espécie de transe.

Nesse transe diferente do primeiro, ele tinha uma sensação de total contradição; ele sentia ao mesmo tempo uma calma e um prazer por estar comendo um doce biscoito em sua casa numa tarde fria, mas ao mesmo tempo havia aquela certeza terrível de que sua vida fora destruída há pouco. Sentia aquela velha sensação de calmaria antes da tormenta, tudo parecia tão simples, tão gostoso e aconchegante, mas no fundo sentia a presença da tragédia, da eliminação total de qualquer possibilidade de alegria no futuro.

No meio dessa contradição terrível, surgiu uma nova idéia, uma nova ponta de linha naquele novelo de baunilha e sangue. Ele pensou com todo respeito e com a ponta de uma alegria surpreendente:

- Se estou com essa dúvida, será que realmente a matei?

Virou-se e começou a caminhar até o quarto. Seu coração quase explodia, tudo o que sonhou, todas suas esperanças estavam em jogo. Sua vida toda, seu bem mais precioso e único seriam definidos em mais alguns poucos passos em direção ao quarto. Se algum ser humano, em toda história da humanidade, chegou ao nível máximo de ansiedade foi esse pobre homem barbado.

Um, dois e no terceiro passo chega à porta, abre os olhos e vê: sua mulher deitada de bruços, a boca entreaberta e dormindo como um anjo. Um perfume ótimo que ela havia recém comprado dominava o quarto e até provocou uma leve excitação, que seria mais intensa se não estivesse encoberta pela alegria e alívio máximos, o clímax da satisfação e do contentamento. Foi isso que sentiu o homem que teve que conter as lágrimas até chegar de novo à cozinha, onde comeu mais um biscoito e chorou intensamente.