O SERTÃO

(Qualquer semelhança com outra história é mera coincidência)
Gumercindo e Joana. No território seco do Nordeste casaram-se. A festa aconteceu em meio à poeira e ao suor. Solo rachado feito o calcanhar dos convidados. Corpos esquálidos dançavam o forrobodó misturando-se aos galhos ressequidos e retorcidos da paisagem. À luz quente do luar não se divisava bem o que eram galhos ou corpos.
Fim da festa e da pouca alegria momentânea. Casa nova para Gumercindo e Joana. Agora tinham um quarto só para os dois, um fogão à lenha novinho, duas redes que ganharam dos padrinhos como presente de casamento e uma mesa com um banco de madeira feito pelo noivo antes do casório, mas o bem mais precioso era o radinho a pilha que a noiva trouxera de lembrança, era ali que se escutava o Trio Nordestino e até Gilberto Gil com sua voz educada cantando “Tô te esperando na janela, ai, ai...”
Em noites de lua cheia, os já não tão recém casados, sentavam-se na varanda acompanhados dos poucos vizinhos para um dedinho de prosa. O assunto preferido era sobre um tal beato chamado Antônio Conselheiro que por ali passara já há mais de cem anos, mas que ainda causava polêmica. Alguns diziam que o tal beato voltaria muito em breve trazendo água para o sertão. A terra iria florescer e dar frutos em abundância.
Florescer... Joana fez uma promessa. Todos seus rebentos receberiam nome de flor em homenagem à volta do Salvador.
A primeira filha nasceu: Rosa. Tentaram um menino para acompanhar o pai no corte de cana, mas aí veio a Margarida. Não queriam mais filhos, o caldo de feijão rareava e o açude estava só na lama, mas a Hortência cismou em vir. Depois chegaram ainda a Vitória-Régia, a Orquídea, a Violeta, a Jasmim, a Tulipa, a Bromélia... Precisaram pesquisar nome de flores, pois não conheciam tantos nomes assim.
Já não tinham mais esperanças e também nem queriam mais um menino quando o pivete decidiu chegar. O pai, seu Gumercindo, queria que se colocasse no menino o nome de uma planta típica da região onde moravam e o pobrezinho recebeu o nome de Mandacaru, seco até no nome.
Situação desoladora, pai e mãe nem comiam mais. Dividiam o pouco que tinham entre as famintas crianças. De vez em quando o pai trazia um calango e aí faziam festa, animavam-se um pouco. Nas raras vezes em que a chuva caía fazia brotar esperanças de dias melhores no coração de cada um. O pequeno menino Mandacaru não tinha forças nem mais para sugar o peito que há muito secara. O viço nos olhos de Joana secara junto com o resto do corpo. Pai e mãe, cronologicamente, não possuíam mais que trinta anos de idade, mas fisicamente possuíam sessenta ou mais.
A seca causticante chegara e não queria mais ir embora. Retirantes passavam por ali de vez em quando carregando pesadas trouxas na cabeça e crianças cadavéricas enganchadas nas ancas. Não tinham forças nem para dizer “Até nunca mais.”
Todos se foram. Os vizinhos, os desconhecidos, os calangos... Todos.
A numerosa família de seu Gumercindo já não tinha forças para fugir.
A seca brava e devastadora gerava notícia e guerra de audiência pelo mundo. Repórteres bem intencionados e bem nutridos iam pelo caminho oposto dos retirantes. Fotografavam e filmavam condoídos a miséria humana alheia. Seus olhos se enchiam de notícias.
Uma repórter “sortuda” conseguiu encontrar no silêncio inóspito da caatinga uma tapera feita de barro e gravetos secos entrelaçados. Decidiu entrar e extasiada deu-se conta do “tesouro noticiário” que acabara de encontrar. Notícia em primeira mão. Flashes no pequeno bebê agarrado ao peito cadavérico da mãe que estava deitada numa rede circundada por três pequenas meninas. Um homem de mais ou menos “sessenta” anos estava caído perto do fogão à lenha abraçado a mais seis mirradas meninas. Uma visão desoladora da morte.
Na televisão da família Gonçalves a notícia fresquinha acabava de chegar. Dona Suzana ralhava com os dois meninos que não queriam comer toda a carne que estava no prato, o pai, seu Reginaldo, complementava a bronca da esposa dizendo que quem não comesse toda a comida não ganharia refrigerante nem pudim de sobremesa. Os pequenos garotos davam de ombro e sorriam. Dona Suzana aproveitou o momento e brigou com o marido mandando que mudasse o canal da televisão porque já estava na hora da novela e o marido só ficava querendo ver desgraça no noticiário e além do mais nem estava prestando atenção.
O que ninguém sabia é que aquela pequena tapera perdida no meio do sertão abrigava o mais belo jardim de flores.