Ocaso

Estávamos sentados num cais, diante da primeira ou da última hora do dia (nós não sabíamos); ao olhar a anêmica claridade, ela disse, em voz baixa, talvez só para si mesma, que o ocaso era lindo.

Depois de um silêncio necessário, perguntei-lhe:

- O fim do dia ou o vocábulo?

- Os dois. Mas refiro-me agora à palavra. Adoro o termo ocaso.

- Não gosta de crepúsculo?

- Prefiro ocaso - insistiu ela.

- Gosto mais do pôr-do-sol que das palavras que se lhe dão - eu disse. E, em vez de ficar quieto, observando o crepúsculo que se nos apresentava, insisti nas palavras. - Nos últimos e nos primeiros instantes de luz, a incidência horizontal do sol - tão distinta da verticalidade do meio-dia - faz com que o céu apresente as mais belas cores, as quais mudam a cada minuto, enquanto se caminha para a escuridão ou se foge dela. É difícil não pensar que o sol, ao constatar a proximidade de sua morte ou de seu nascimento, tente parecer mais suntuoso.

Ela me respondeu:

- Esta horizontalidade inerente ao crepúsculo de que fala traz uma sensação de paridade: ao meio-dia há uma claridade intensa e inelutável, o sol reina absoluto; mas no ocaso ou na alvorada o vemos à altura de nossos olhos, o que nos dá a sensação de que a terra se lhe sobrepõe. E o brilho intenso, que nos impede de observá-lo nas suas horas mais reluzentes, cede no começo e no fim do dia: o sol, logo que nasce ou perto da morte, torna-se brando, permitindo que o observemos sem nos cegar. Gosto desta vulnerabilidade. Você prefere crepúsculo a ocaso?

- Sim. Ocaso sempre significa fim - expliquei-me. - Crepúsculo, no entanto, pode se referir à última ou à primeira hora do dia: pode ser matutino ou vespertino - presta-se a descrever a luz frouxa que, ao amanhecer, liberta todas as cores, e, ao anoitecer, precede a escuridão. Acredito piamente que a melancolia do fim da tarde (você também a sente?) é um luto, ainda que inconsciente, pela prisão das cores.

- Às vezes sinto essa melancolia; mas não sei é a morte das cores a sua causa. Na verdade, o nascimento, auge e morte do sol e principalmente essa transformação do dia em noite ou vice-versa - a hora crepuscular - lembra-me mais da intensidade dos sentimentos do que de um sentimento específico.

- Como assim? - perguntei.

- Gosto de comparar a intensidade do sol ao que as pessoas me despertam. Há pessoas que provocam imediatamente a intensidade do meio-dia, ainda que não durem mais que uma tarde ensolarada; outras parecem corresponder ao trajeto de Hélios no seu carro de fogo pelo céu: surgem do oceano, no crepúsculo, ascendem gradualmente, brilham impiedosamente ao meio-dia, e descem, pouco a pouco, ao ocaso e à noite. Há as que nunca deixam de ser como manhãs (ou tardes); e também as que são crepusculares, e dentre estas existem algumas que não se pode definir com segurança se são como ocaso ou como o amanhecer.

- Você se esqueceu da noite - afirmei. - Existem pessoas que despertam (ou adormecem) sentimentos como a noite: algo misterioso, obscuro mas atraente - mormente quando Hélios se reflete na face lunar e impõe sua tênue e difusa claridade à escuridão; quando o sol invade a noite por meio de seu reflexo na lua cheia (de luz solar).

- Na verdade, se conhecemos uma pessoa há muito tempo, vemos todas as fases do dia e todas as estações nesta relação: o sol do verão, a indefinição de um crepúsculo, o calor agradável de uma manhã de outono, a noite invernal... Você já reparou como os turnos do dia correspondem às estações? O que é o inverno senão a noite? A primavera é a manhã; o meio dia, o verão, e a tarde o outono.

- Hélios é o rei do controle das estações; o tempo é medido por meio das voltas que damos em torno do sol. É a relação entre sol e terra, que, em última instância define os dias e o tempo; e é ela que confirma a importância da distância nas relações. Hélios conduz seu carro de fogo, puxado por seus cavalos, a uma distância perfeita da terra, sob pena de, ao se afastar demais, relegar-nos ao frio mórbido, e, ao se aproximar muito, incendiar-nos.

- Você sabia que isso já aconteceu? – perguntou-me ela, olhando o céu com se procurasse alguém. E respondeu: – Certa vez, Hélios entregou a Faetonte, seu filho, as rédeas do carro de sol e ele, imaturo e impetuoso, violou a distância que deveria manter da terra e se aproximou tanto que causou um aterrorizante incêndio. Mas, apesar da tragédia que culminou com a extinção de Faetonte (Zeus o fulminou com um raio), este incêndio concedeu ao homem o poder sobre o fogo. O desequilíbrio não causa apenas danos, mas também ganhos.

- Às vezes é preciso ultrapassar certas barreiras, apesar da dor de fazê-lo. O fogo é um dos principais elementos da transformação: é por meio dele que forjamos metais, violamos a escuridão da noite, livramo-nos do frio... Trata-se de um pedaço do sol que manipulamos conforme nossa vontade; embora às vezes ele nos lembre de sua superioridade e descontrole primários e nos submeta à sua força.

- Vejo-nos num crepúsculo - ela falou olhando-me nos olhos. - Não sei, no entanto, se se trata de um novo amanhecer ou se é a noite que começa a se impor. Não me importa. Ainda que seja a noite, sei que a escuridão passará, e um novo dia, iniciado com um novo crepúsculo, virá.

- Desejo a alvorada. O ocaso é belíssimo, eu sei; Ulisses e Calipso se amaram pela primeira vez durante o pôr-do-sol. No entanto, quero a alvorada; mesmo sabendo que para nascer aqui, o sol deverá morrer lá...

E ali permanecemos, em silêncio, perscrutando o céu, o qual, desde a primeira palavra, possuía a mesma tonalidade purpúrea. O tempo parecia suspenso: a sensação que tínhamos era de que o crepúsculo manter-se-ia enquanto não convocássemos o sol ou a noite.

Fernanda Sier
Enviado por Fernanda Sier em 30/05/2011
Código do texto: T3002386
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