Duzentos e treze

“Nessa rua, nessa rua tem um bosque.”

- Qual é seu nome, meu anjo?

- Sô anjo, não (surpresa).

- Não? Que pena, parece. Se não é anjo, é fada!

- Também não sou (sorriso).

- Mas eu sou mágico, sabia? Quer que eu adivinhe seu nome? É Laura!

- Não (sorriso)...

- Hum... é Fernanda?

- Não também (risos).

- Acho que meu duende verde está mentindo para mim só para eu passar vergonha com você.

- (risos) É Maria da Graça.

- E o apelido é Gracinha?

- (risos) Não, é Mariinha mesmo.

- Lindo nome. Sou Ricardo, muito prazer.

- (inocente) E o seu duende, tem nome?

- Tinha. Mas agora estamos brigados e não vou apresentá-lo a você. É casada?

- (risos) Não, solteira.

- Ainda? (fingindo surpresa) Mas tem namorado...

- (sorriso) Não, minha mãe não deixa.

- Por quê? É tão bonita, uma mocinha...

- (orgulhosa) Já tenho dez anos!

- Já? Tá na escola?

- É, eu tô.

- Quer ser o que quando crescer?

- Modelo. E atriz. E médica também.

- Sério? (fingindo interesse) Puxa, que legal.

- O senhor tem filhinha?

- Não. Sou casado, mas não tenho filhos. Você pega ônibus aqui?

- Todo dia.

- Sozinha?

- É. Às vezes, tem gente. Mas hoje choveu e minha mãe tá trabalhando.

- Se quiser, te levo de carro. Eu ligo para sua mãe e peço para ela. Ela deixa.

- Não, o senhor é estranho.

- Não, não somos mais! Somos? Eu até sei que você gosta de bolo com sorvete!

- (risos) Mas eu não disse isso!

- Mas acertei, não acertei?

- Acertou (risadas).

- Olha, eu vou levar você. Tá chovendo. Eu tenho que pegar minha mulher no trabalho e levo você para tomar sorvete com a gente. Depois, deixo você em casa, tá bom?

- Não sei.

- Vai pensando. Vou pegar meu carro. Onde você mora?

- Santana.

- É longe...

- É.

- Mas eu levo. Espera aí e vai pensando, tá bom?

(...)

“Que se chama, que se chama solidão.”

Desligou mais uma vez o telefone. Desanimada, confusa, com medo. Já perdera o bom senso. Eram oito da noite, chovia, onde ela estava que não chegava, uma criança, sozinha, na rua...

Tentou afastar os pássaros maus dos cabelos, mas eles bicavam seus olhos, ouvidos, boca, tirando o resto de sangue que ainda a fazia sentir-se humana.

- Alô boa noite a senhora me desculpe mas minha filha é amiga da sua e até agora não voltou pra casa e eu pensei que de repente ela pudesse de repente estar com sua filha na sua casa na casa da senhora e ...

Outra negativa. Não, não está. Não, não viu. Não, não veio.

- Por favor é do hospital minha filha tem dez anos eu trabalho e eu deixei ela pegar o ônibus sozinha era um ônibus só sabe e ela não voltou até agora ela deve ter pego o ônibus das seis da tarde eu acho mas não não fui na polícia ainda não fui Maria das Graças dos Santos dez anos branca cabelo escuro e comprido ah não foi é eu vou na polícia é obrigada boa noite obrigada.

O que pensar? Tocou as paredes do quarto, olhou através das janelas, quis negar a noite que abria asas silenciosamente. Sentiu-se só e naquela hora quis um marido, um pai, um irmão, um amigo – ela, tão independente, queria, precisava, sentia alguém.

O telefone tocou. Ansiosa, atendeu.

- Sim, sou. Isso. (...) Graças a Deus! (...) Como? Eu... sim, eu não tenho como, ah, eu espero, o Conselho? (...) Meu Deus. Meu Senhor Jesus. Não, não, graças que... não pegaram? (...) Como assim, ela não fala? Eu estou indo, eu vou já. Obrigada, obrigada.

(...)

“Dentro dele, dentro dele mora um anjo.”

Uma, duas, três, quatro, cinco, seis, sete, oito estrelinhas, um dois, três, quatro luas, um dois, três, quatro, cinco, seis canetinhas, uma, duas, três, quatro bonequinhas...

Tô cansada. Cadê minha mãe? Por que ela não chega, por que eu tô sozinha? Quero a minha mãe. E quando ela chegar, vou contar tudo que essa gente tá fazendo comigo. Eu não quero ninguém, eu quero a minha mãe, eu quero ela, ela vai me entender, ela vai ficar brava, mas eu vou falar pra ela, eu não fiz nada, eu ia pegar o ônibus, mas eu falei com o estranho, mamãe vai bater ne mim, ela vai ficar brava, mas eu não fiz nada, eu não quero ficar aqui, eu não quero falar com o guarda, com essa gente, eu quero ir pra casa, o Bili tá sem comida e eu tenho que fazer a tarefa porque amanhã a tia vai dar figurinha pra quem fizer tarefa, eu não vou pro hospital, não quero ouvir esse monte de gente chata, quero a mãe, estrelinha bonitinha, vou pedir pra moça me dar, mas aí ela vai pedir de novo pra eu falar se eu pedir a estrelinha, mas se ela me der a lua, eu falo, mas não vou falar, se eu falar que falei com estranho, minha mãe vai bater ne mim, eu vou mentir, vou dizer que falei com ele, ele não era tão estranho, mas eu não digo que fui pro carro, aí a gente vai pra casa e tudo bem, eu vou dar comida por Bili também e...

- Mãe!!!

- Mariinha!!!

(...)

“Que roubou, que roubou meu coração!”

Suicídio em Itaquera

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M.G.S., 20 anos, branca, solteira, suicidou-se na madrugada de hoje. Seu corpo foi encontrado por familiares em seu quarto. Conforme apurado, M.G.S. causou sua morte ingerindo formicida. A família da jovem, em choque, informou que estavam em viagem e, ao voltarem, constataram a porta do quarto da vítima trancada à chave, arrombando-a e encontrando o cadáver. Segundo vizinhos e conhecidos, M.G.S. sofria de depressão e tentara o suicídio em outras duas ocasiões, fazendo uso de medicação controlada e tendo acompanhamento psiquiátrico desde os onze anos de idade.

A Polícia Científica esteve no local, colhendo material para posterior análise e elaboração de laudo. Entre objetos de uso pessoal e medicamentos, um bilhete, deixado pela jovem (veja box abaixo) descartaria a princípio, segundo o perito, qualquer possibilidade de violência ou interferência de terceiros. O corpo, necropsiado no Instituto Médico-Legal, foi liberado à família e será sepultado em tarde de hoje.

Perguntado a respeito do óbito, o delegado responsável pelas investigações, Dr. Anagildo Corrêa, disse lamentar o terrível incidente, esclarecendo que as providências de rotina e a instauração do competente inquérito policial serão feitas para dirimir quaisquer dúvidas.

(box apenso à reportagem)

Deixo neste mundo minha infância

minha inocência

meu pecado

minha mágoa.

Nada tenho de alegre ou de belo para deixar.

Levo deste mundo minhas lágrimas

minha desilusão

minhas angústias

meu medo

Nada tenho de alegre ou de belo para levar.

Ainda vou caminhar por bosques verdes!

“E o solo crestado pelo calor se terá tornado como um banhado de juncos, e a terra sedenta, como fontes de água.” (Isaías 35:7 parte a)

<M.G.S., 20 anos, suicídio por envenenamento>