Crime Passional

Um casal de joão-de-barro chegou à Praça da árvore com os últimos dias do verão e trabalhou duro. Os hábeis arquitetos, em idas e vindas, trouxeram penas, garranchos, musgo, terra e até tufos de cabelos. Com os pequenos bicos e pés formaram uma massa pegajosa e impermeável de barro com a qual moldaram as paredes. Dentro de 10 dias a família já tinha uma oca grande, com dois compartimentos espaçosos, onde podiam se abrigar do vento e da chuva. Era uma obra sustentável, segura, com uma única entrada, do tamanho de uma bola de tênis.

A Praça era um bom quintal e integrava bem natureza e civilização. Formada estruturalmente de paineiras, ipês e poucas figueiras, dispostas em uma figura oval. As árvores foram plantadas muito perto uma das outras e em vez de competirem por espaço se abraçaram, ligando-se pelos galhos e pelas folhagens. Sob elas foram fabricados bancos de concreto onde se sentavam dezenas de pessoas durante o dia e durante a noite. Os transeuntes passeavam com freqüência pelos caminhos, espantando os pombos que procuravam migalhas. Era possível ver no alto a oca dos pequenos joões-de-barro, que ficava na base de um galho protegida pelo caule de uma frondosa paineira, mas era muito difícil perturbá-la. Os outros pássaros respeitavam o domínio do casal e dificilmente o incomodava. Era um lar perfeito para uma futura família feliz. Até mesmo antes de a casa ser construída esta felicidade já estava iminente. O macho envolvia a fêmea com o bico, como se a beijasse e ela lhe retribuía retirando-lhe os parasitas das penas. Voavam um atrás do outro como dois meninos brincando de pega-pega. Outras vezes ficavam a grunhir baixinho um com outro, tal dois velhinhos conversando sobre o passado.

Desse amor nasceram dois filhos. Apenas dois ovinhos, mas que aos poucos foram modificando toda a rotina diária dos pais. À mamãe joão-de-barro coube aquecê-los, protegê-los contra a nocividade. Fazê-los sentirem-se amados e abençoados no mundo. Ao pai coube-lhe a responsabilidade geral pela família, foi encarregado de supri-la das faltas e defendê-la contra os predadores e intrusos. Por isso voava pelos arredores, voltando sempre, uma ou duas horas depois, com insetos ou pedaços de frutas. Enquanto os filhotes não vissem a luz do sol, cuidava apenas de alimentar à esposa, para que não se ausentasse de perto dos ovinhos.

Numa de suas saídas o papai joão-de-barro voltou mais rápido do que de costume, trazendo no bico um aflito e protéico bicho-de-pau-podre para sua querida senhora. Ao chegar próximo à sua casa teve que jogar fora o alimento e debater-se com uma andorinha que pousada no galho passara quase todo o corpo para o interior da oca. Murmurejava com a senhora joão-de-barro, que parecia não se importar. Os dois machos se digladiaram por alguns minutos, mas o joão-de-barro expulsou o outro com fúria. Olhou para trás a mamãe joão-de-barro continuava serena, aconchegada no segundo compartimento da oca. O senhor joão-de-barro voou e minutos depois voltou trazendo no bico: penas, musgo, garrancho e terra. Repetiu as idas e vindas por várias vezes até reunir o bastante. Misturou tudo com o bico e as pequenas patas.

Sem nenhum movimento de protesto fechou a única entrada da oca, com a senhora joão-de-barro e os seus filhotes lá dentro.

Depois sumiu no mundo e nunca mais se ouviu falar dele na Praça da árvore.

Sérgio Caldeira
Enviado por Sérgio Caldeira em 08/06/2011
Reeditado em 10/08/2011
Código do texto: T3022365
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