Á sombra do corvo. Cap. 1 - Palavras

“Quando se começa a viver de verdade? Será no momento do parto, quando se ouve o choro esganiçado daquele ser que sequer consegue abrir os olhos, ou quando ainda se está no útero daquela que é sua progenitora biológica, ou quando espermas e óvulos se encontram na contínua luta pela perpetuação da espécie ou no momento do beijo trocado com segundas intenções apaixonadas ou de puro tesão que resultarão em uma cópula sem preservativo ou anti-concepcional por descuido dos envolvidos? A vida é em si um conceito antes de ser um dado físico?”

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Ok, essas perguntas podem parecer um turbilhão demasiado entediante ou repetitivamente filosófico para uma segunda-feira, mas como esse é sempre o primeiro dia útil da folhinha, é sempre com esses pensamentos tortos que acordo há pelo menos 15 anos dessa vida através da qual ainda não descobri ao certo quaisquer das respostas para as referidas questões. Enfim, desligar o despertador já desejando uma caneca de café quente é apenas a ponta do iceberg de mais essa semana que se inicia. O dia ainda está clareando fora da janela, o frio desse inverno dissimulado começa a se dissipar para em breve dar lugar a um calor daqueles que pedem desesperadamente o ar condicionado alheio de algum shopping.

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Banho, barba, cabelos penteados e roupa vestida em 30 minutos, realmente me tornei expert no manuseio do tempo a meu favor. O café da cafeteira deixa a desejar, mas antes de bater o ponto no trabalho eu pego um expresso na lanchonete para compensar. Morar quase meio ano em Portugal me deixou extremamente exigente, se o café não for forte não será capaz de me satisfazer. Lembro ainda como as pessoas ficam indignadas todas as vezes que eu desdenho dos cafés franceses e espanhóis como “águas ralas” e acertivamente aponto somente o café italiano como digno de equiparação com o café português. O café de Nova Iorque tem seus pontos e baixos, no caso da Starbucks, como sou um fã viciado, o café late machiatto é meu xodó, embora eu saiba que só com muita baunilha em pó para disfarçar o gosto do café puro insosso norte-americano. Bom, com todo esse bate papo, eu deveria trabalhar em uma cafeteria não é mesmo?

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Levo quase quarenta minutos para chegar ao trabalho, pois a localização fica no ponto geográfico oposto da minha residência. Saio cedo para evitar o trânsito congestionado depois das 8h da manhã. O taxista sempre fala demais e admito que somente balanço a cabeça para que ele não me ache desatencioso, mas é complicado me concentrar em assuntos que giram em torno de “forró da sexta-feira a noite” ou “bebedeira do sábado na orla caçando mulheres”. Embora eu não seja totalmente arrogante (só um pouquinho!), tais temas estão tão distantes da minha vida e do meu cotidiano que ás vezes me pergunto se não sou algum tipo de alienígena abduzido pelos humanos. Mas também estou longe de ser um nerd aficcionado por jogos eletrônicos e fera em computadores, tanto que consigo destruir pc’s e celulares na mesma velocidade com que novos processadores são lançados no mercado.

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Eu tenho pouco mais de 30 anos, mas não aparento, acho que o tempo em si tem me conservado bem, tanto que alguns ainda me dizem que tenho cara de garoto. Talvez eu seja de fato um camaleão e esteja nessa vida assumindo contornos que se moldem ao que as demais pessoas desejam enxergar e não traduzam em si o que sou de verdade. Mas se isso for um fato, então quem sou eu de verdade? Bom, acho que se tivesse essa resposta não teria ficado mais de um ano fazendo análise para descobrir que no fundo “a culpa não é da mãe”, como diria Freud, mas que invariavelmente pode ser do pai.

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Há alguns dias eu estava folheando um livro e uma frase me chamou a atenção: “As coisas que vivenciamos no passado marcam profundamente as pessoas que nos tornamos no presente”. Não me lembro a autoria, mas devo concordar que embora em grande parte do tempo queiramos fazer com que o presente e o futuro sejam mais fortes do que as memórias do passado, ele está sempre lá, nos assombrando como um fantasma transparente e sussurrante. Admito que ainda não consigo lidar com isso de forma eficiente e vez por outra tanto o passado de tempos atrás como o passado recente me visitam seja na forma de pesadelos, devaneios ou lembranças quase sempre indesejáveis e dolorosas. Se o passado tivesse cheiro de chocolate quente em um dia de intensa nevasca ou gosto de bolo de cenoura com calda chocolate em uma tarde de domingo as coisas seriam bem mais simples.

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Me debruço sobre o balcão da livraria e observo as poucas pessoas que caminham pelas estantes a essa hora da manhã. Estudantes, buscando livros que lhe dêem respostas para formulações da química, física, matemática, buscando gramáticas ou mesmo a legislação para lhe auxiliar em algum trabalho de final de semestre. Trabalhar em uma livraria é interessante, pois ajuda a exercitar a capacidade de “ver” as pessoas em seus gestos que dizem sempre muito mais do que as palavras faladas. As pessoas são sempre enigmáticas e nunca transparentes, mesmo aquelas com quem se convive por toda uma vida sempre serão em parte “estranhas”. Sempre existirão sótãos ou porões onde segredos, impulsos e/ou mágoas serão exilados das máscaras sociais com as quais as pessoas se transvestem no dia a dia para conviver em uma sociedade que lhes cobra determinadas regras de comportamento como passe para aceitação coletiva. E cada um busca uma forma de aceitação para afastar de si a assustadora solidão com a qual a maioria não consegue lidar sem cair em profunda depressão.

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Mas eu gosto das palavras escritas, acredito no poder delas, na ação de transformação, salvação e perdição ás quais elas podem conduzir. O problema é que os caminhos são tortuosos entre o que escrevemos e o que apreendemos na leitura. Ler os outros em sua profundidade já adultos é muito mais difícil do que iniciar o processo de alfabetização quando criança. E de certa forma, a maioria das pessoas vive um analfabetismo funcional, como foi apontado por Bertold Bretch, dada sua incapacidade de compreender nos signos mais do que aparências. E talvez esse seja o maior dos meus erros nessa vida (dentre tantos): querer ir na contramão da massa, querer fazer dos signos um portal para mim mesmo.

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Sempre dizem por aí que “uma andorinha só não faz verão”, mas quem sabe um corvo possa fazer um inverno. E é justamente aí que minha história começa...