Quando a água bate no pescoço...

Não sei se só eu estou errado no mundo, não sei o que fiz ou o que deixei de fazer para presenciar a lenta degeneração de meus dias.

Bebo uma odiosa cerveja preta, com prazo de validade vencido, doada pelo mercado do Amadeu, com salame saturado, igualmente vencido e cigarros do paraguay, que dão liberdade, fazendo com que a alma se “despregue” logo do corpo.

Além do mais, nem um fantasma surge diante meus olhos incrédulos, a dizer que meus dias já eram, que eu não cumpri com o programado, mesmo quando milagrosamente toca Emerson, Lake and Palmer na rádio.

Mais uma vez não consegui emprego e gastei o dinheiro que tinha para procurar amanhã.

Não sei mais o que faço, se mato, me mato, fujo pro mato ou fico calado, prostrado, esperando que me levem acabado para dissecação em alguma universidade federal.

Não quero mais dormir e muito menos acordar, estou mais pra lá do que pra cá, não tenho o que urdir e nem para onde fugir.

Viciei-me no ostracismo e , afundado em misantropia, sobrevivo dentro do ralo, acompanhado por baratas alucinadas.

Estou magro feito um rato do deserto, minha mulher fugiu, meus filhos foram levados para a Europa por uma instituição de caridade, e o que o deputado Tiririca me prometeu, quando veio aqui no barraco, em campanha, não cumpriu. Ao menos veio... Tenho uma foto com ele alí no bule vazio...

Está muito frio, meu sapecanegrinho está puído e empoeirado. Meu cão, o Astulfo, morreu na última semana, acho que de frio. Anteontem a Sociedade Protetora dos Animais passou por aqui, notificando-me a respeito e dizendo que sou um monstro e que seria processado e teria que pagar uma multa por maus-tratos aos animais.

Mal sabem eles o quanto amava o Astulfo, companheiro de oito anos. Mais ainda, ou era ele ou eu, e porque não me protegem também, já que não passo de mais um desses animais que vagam por aí nas noites frias?! Afinal de contas, sou mais animal do que o Astulfo.

Fico pensando: se liberarem a maconha os agricultores vão deixar de plantar arroz para plantar erva. E como gosto de arroz, quentinho, com caldo kinnor, e não o tenho agora... Erva só fumei uma vez, por engano, achando que era cigarro de palha- fumo goiano, e vomitei. Arroz posso comer todo dia que vou é achar bom.

Pena ser noite alta e não ter nem uma migalha de pão pra comer, e o sono que não vem, a fim de fazer com que esqueça tudo por um lapso de tempo, isto é, quando não abarcado por suores noturnos e pesadelos traumatizantes, frequentes ultimamente.

Na semana passada arrumei uma amante, a Jacirema. Ficou comigo dois dias, suficientes para planejar o furto de meu liquidificador a fim de trocá-lo por cinco pedras de crack. Agora não tenho mais como bater aqueles abacates furtados do terreno do Seu Jaime. Os batia com água e uma colher de mel. Tudo conseguido por aí, sem lesões ou ameaças a terceiros ou à sociedade legalmente constituída de um modo geral, o Estado Democrático de Direito. O caralho!

Às vezes saio à tarde procurando um pé de fruta qualquer que me sacie a fome lancinante. Uma manga, jabuticaba, goiaba, etc. Já comi muito daqueles frutos das árvores dos morcegos, a sete-copas. E era até gostoso, mas agora tenho um pouco de receio, tendo em vista a onda de doenças estranhas que brotam todos os dias nos noticiários.

Quando criança tinha um maior leque de comidas exóticas, folhas de laranjeira, quando não tinha laranja, de goiabeira, algumas flores que continha uma seiva adocicada, joão-bolão, salsinha e cenourinhas das hortas públicas, às quais pulávamos os muros, eu e uma galera de moleques sujos. Comíamos também uns caules que nem sei mais o que eram... Crianças famintas e desemparadas são a maior tristeza da humanidade em toda sua história. Uma judiação!

Lembro-me de um colega de infância, apelidado Sebinho, que costumava desmaiar de fome. Tanto é que ninguém gostava de chamar ele para jogar futebol. Vivia caindo dentro da área.

Fiquei sabendo que um dia caiu de vez e tiveram que chamar o rabecão. A limpeza pública foi ágil em retirar o corpo, afinal era dia de visitação das irmãs carmelindas do centro cristão de apoio aos menores indigentes, de Trinidad Tobago.

Sebinho foi enterrado como indigente no muro do cemitério, sem lamentações, pois as vagas estavam reservadas, e aos indigentes restavam apenas aqueles amontoados nas laterais do cemitério público. Coisa triste. Que vida teve o Sebinho? Morreu aos trinta e três anos, vítima de algum grupo de extremista, massacrado, mas ninguém se interessou em se aprofundar na investigação.

Sebinho, provavelmente, aos olhos dos “líderes”, não merecia muitas despesas públicas. Nem RG tinha... Era um renegado...

Quando a água bate no pescoço.

Quando o buraco é mais embaixo.

Quando te deixarem apenas o osso...

Te encherem o saco...

Não fique por aí...

Cabisbaixo...

A olhar de rosto em rosto...

Olhe para dentro de si...

E siga...

Para longe do imposto!

E não se renda...

Jamais!

Mesmo que a contragosto...

Savok Onaitsirk, 14.06.11. 18:18.

Cristiano Covas
Enviado por Cristiano Covas em 15/06/2011
Reeditado em 15/06/2011
Código do texto: T3035713
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