Ele

Ele apresenta falhas difíceis de lidar. Ontem até bebeu pouco, mas, se não cuidar, pronto, passa reto na curva em que dizia pare. Boa pessoa até, sabe, tem lá sua facilidade de fazer amigos, contar histórias, sorrir mesmo para uma tempestade, mas... não, a questão é que ele errou.

Hoje pela manhã, não se sentindo bem, decidiu subir a montanha em que chovia já há alguns dias, ficar mais próximo do barulho dos trovões e da chuva, mais amigo do tempo, menos omisso à natureza. Nem bem se passaram dois minutos e havia chovido muito ao redor, como se as nuvens realmente quisessem acolhê-lo novamente. Vez ou outra uma flauta distante, ou um som mais agudo de algum instrumento (talvez uma harpa?), insistindo na mesma nota, o levavam mais acima e mais acima da montanha, bem distante da obra em que os pedreiros martelavam descadenciadamente o prosseguir do último dia útil da semana. Sua alma não enxergava nada na chuva, apenas desejava estar ali, entre o barulho dos trovões e a busca pela harpa, pela nota contínua, pelo esvaziar de sua mente. Não esquecido de seu erro, descia a montanha volta e meia para certificar-se de que o mundo ainda continuava diante e ao redor de sua janela.

Naquela semana estava brabo consigo mesmo, não havia como não chover em seu mundo, não havia como evitar os trovões, e ele mesmo nem queria isso, queria mais era estar mais e mais perto de tudo que o aproximasse da terra e o distanciasse do cotidiano, queria que a desordem do quarto não representasse a desordem no mundo, queria que os livros das estantes não representassem uma coleção desnecessária, que fossem menos seus dependentes e ele mais amigo deles, que os devorasse mais, que os absorvesse com mais prazer, sem os mirar com tanta obrigação postergada... e queria apertar mais os parafusos da frente de sua bicicleta e desencostá-la do tempo, praticar diariamente as ásanas impressas e afixadas na porta do banheiro, ter mais frutas e menos lanches em sua geladeira, e mais fogo em sua alma, e menos distância em seu olhar. Queria livrar-se de sua impotência sem precisar abraçá-la mais e dizer: eu te recebo.

Quando a chuva foi cessando (ao fundo, aquelas mesmas notas), a goteira resultante foi lhe enxugando mais o espaço interior, como se seu espírito começasse não a diminuir, mas se redimensionar para um tamanho mais ciente de si, no aqui e no agora, sem tempo para culpas... só mesmo o taque-tique do relógio para que, debruçado sobre seus pensamentos, escapasse ora ou outra para contemplar isto ou aquilo que voasse diante da janela relembrando-o do erro. Do erro não, mas de que havia falhado.

Nem fazia muita questão do erro em si, mas, falhar, ah!, isso sim o perturbava. Aposente-se um pau de toda obra para ver se ele não se questionará sobre suas essências: seriam todas as obras mesmo? Questionar-se-ia, realmente, a tora, sobre a necessidade de ir-se embora? O temporal não havia acabado, não.

Pau para toda obra, o quebra-galhos, aquele a quem pertenciam por lei (de que direito?) os salgadinhos e refrigerantes que sobrassem na festa, o fiel confessor, o braço que sempre se oferece, contrastavam agora com os pingos múltiplos e mais fortes do aguaceiro, e novas cores iam escorrendo por sobre os mesmos quadros, gerando novas imagens, novas leituras de momentos adormecidos. Lembrou-se, por primeiro e decididamente nesta ordem, da separação dos pais. Trovoada.

Os adultos discutindo, à noite, provavelmente verão (pois que o incêndio da casa havia acontecido em janeiro e já em fevereiro haveria a separação – e mais que isso: havia o cheiro do mato dos barrancos adentrando os recintos, era mesmo verão), mãe e pai chorosos, clima tenso, e o guri de nove anos e meio diante dos dois, choroso também, prometendo ser bonzinho se eles não se separassem, prometendo que tudo ia ficar bem, prometendo que não faria mais nada de errado, que não se separassem. Diria a mãe, quase vinte anos depois, que decidira então ficar com todos os filhos, mas antes destes vinte anos está a memória dele, que mui bem se lembra dos pais pedindo para que ele decidisse com quem ficar. Ora isso, ora a figura da mãe dizendo que ficaria com ele. Sequente às duas, ele então pulando na frente do pai e dizendo que sim, que iria então com o pai, para cuidar do pai, para ser companheiro do pai, pois que o pai, tendo-o que cuidar, tomaria mais juízo e seria mais responsável. Não foi nem poderia ser bem assim o desfecho. A verdade, garoto, ouça bem, é que tomaste um lugar que não era teu. Não tinhas que decidir pelos adultos, e ainda que o tivesses, que fosse por afeto, não por (julgava) responsabilidade. Não te cabia, principalmente ali, cuidar de quem deveria cuidar de ti. Não ao menos como achavas que seria. E cuida também para o fato de que por mais difícil a escolha, escolheste. Escolheste. Aceita: escolheste. Para de olhar o que escorre pelos vidros lá fora e aceita que decidiste.

Como no incêndio que sucedeu a morte de teu avô e antecedeu a separação dos pais, será que ele lembra? Será que ele lembra que, naquele dia em que quebrou a cabeça de uma Nossa Senhora (que ficava atrás da porta de entrada) com sua bola dente-de-leite, será que ele lembra de que falou “um dia ainda vamos morar num lugar melhor” e que, pouco tempo depois, estava com duas irmãs, presos (incoerentemente, com a janela aberta) no quarto do casal, enquanto seu pai ateava fogo em colchões por cima daquela lambreta que tantas vezes, quando em sua garupa, o curou dos ataques nervosos da bronquite? Será que lembra que, ao chegar à porta da oficina, em que o velho dava banhos de diesel, querosene, gasolina etc. em máquinas de escrever, lá estava um fogo dos infernos a consumir tudo, que ele correu e alcançou uma garrafa d’água e que, não conseguindo jogá-la ao fogo, achou que seria melhor acontecer o que havia para acontecer? Por que Deus não mandou um temporal de verdade para varrer todo aquele fogo dali? Por que tudo tinha que durar menos de cinco minutos? Por que só agora chove tanto, enquanto ele se lembra de que daquele dia em diante, até a morte do pai, teve de carregar a impotência de não ter apagado o fogo, e de ter sido cúmplice, desde seus nove anos e meio, da mentira de que tudo não havia passado de uma faísca na fiação velha da oficina que havia originado tudo? Entre ver o pai preso e mentir todos os dias para a criança que presenciou tudo, não titubeou em repintar a realidade aquela vez. Por isso encostes essa enxada, deixa da ideia de cavar valas para escoar a água e aceita: decidiste que o fogo deveria continuar. Decidiste por isso. E realmente nem tudo dependia das tuas decisões, o fósforo poderia ter decidido não acender, o pai poderia ter decidido não queimar, Deus poderia ter mandado a chuva, a peça contava com muitas personagens, não te queiras único nem no palco, nem na plateia. Vem por aqui, onde não há poças.

Com o olhar fixo à frente, ele então se lembra do dia em que pediu para Deus (às vezes no palco, sempre na plateia) levar a ele e não à mãe, quando esta foi trancada no quarto pelo marido, ela gritando por ajuda e o outro a estapeando. Ele não teve coragem de arrombar a porta (e já contava então com seus dezessete anos), preferiu chorar em sua cama, no piso de baixo, sob a discussão, e rezar, e rezar, e pedir que o que tivesse de acontecer acontecesse com ele não com ela, por favor. Sua mãe o culparia, algumas vezes, de não ter feito nada. Ele, inconscientemente, passaria a se culpar durante muito tempo, afinal era a viga de toda construção, por que não lançar esta viga à porta, arrombá-la e salvar a vítima das mãos do algoz? Sim, o arco-íris começa a aparecer agora, mas te aquieta um pouco e presta atenção: decidiste por isso. E não eras o único, nem no palco nem na plateia. A mulher, mais forte que o marido, poderia ter se rebelado, o empurrado, conquistado sua própria liberdade. O homem poderia ter sido mais homem e menos vilão. O vizinho poderia ter vindo ajudar. Deus poderia ter aparecido e mandado os dois calarem a boca. Mas foi assim: tomaste tua decisão, e a peça seguiu seu rumo.

Enquanto mira o arco-íris, vai se dando conta do próprio erro, da própria falta: falta-lhe aceitar que há um limite, independente se o aceita ou não. Alguém de confiança, há algum tempo, disse-lhe de perto que “há algo em nós que clama para ser ouvido e que, mesmo que insistamos em não ouvi-lo, acaba sempre aparecendo, muitas vezes distorcido, mas aparece”. Foi como vim parar aqui: fugindo de meu chamamento interior, que me lembrava, a cada passo na montanha, que ele sou eu. Pois então acordes e decida: foste ele, ele não é você. Mantém-no em terceira pessoa, rapaz, já tens idade de sobra para conjugar melhor o que aprendeste nas aulas de português.

(Publicado originalmente em: http://quasedois.blogspot.com/2011/02/ele.html)