Carta

Minha mãe, não se preocupe nem se zangue por eu escrever estas palavras para você. Esperei nove meses para conhecer seu rosto, levei quase um ano para correr até seus braços, mais de dez anos para me perdoar e voltar a visitá-la, e agora... bem, é aos poucos – e há anos – que estou me reacostumando com tudo, por isso peço um pouco de paciência, haverá muitas novidades em breve para mim, muitas delas teu coração materno há muito já conhecia, as quais eu, neste exato momento, mal conheço e ainda nem desconfio se realmente saberei um dia.

Lembra-se de quando eu perguntei do pai e você disse que ele havia morrido? Ele me visitou. Chorei muito ao ver aquele sorriso de anos atrás. Eu achava que estava só em meu caminho, e o pai apareceu para provar – Graças a Deus – que eu havia me enganado mais uma vez. Estou até agora sentindo os arrepios de quando ele me abraçou e disse no meu ouvido que me amava muito. O pai errou em muitas coisas, é bem verdade, mas o amor dele fazia falta, sabe. A presença dele, o olhar dele, o sorriso dele... Acredita que, com o tempo, eu já havia me esquecido de como era a voz dele? Veja a senhora que não adiantou eu guardar a fitinha k-7, pois a perdi em meio a tantas mudanças – a maioria delas abrupta. O pai mandou lembranças, disse que ainda sente sua falta. Perguntei o porquê dele, que está livre, não ir visitá-la, nesse momento ele chorou muito, mãe, desabou mesmo em choro, como uma criança, soluçou como uma criança e agarrou-se em minha mão, e disse que há coisas e pessoas a que damos valor somente quando as perdemos. Ore pelo pai, mãe, ele parece estar sofrendo muito mesmo com isso.

Não menti nem omiti o que a senhora sente por ele, mesmo porque, hoje, não tenho mais certeza nem dos meus próprios sentimentos, quanto mais dos meus pais, amo vocês, mas o sentimento humano é realmente muito pessoal e jamais buscaria invadir os sentimentos de vocês, ainda mais a senhora, que foi sempre a mais reservada de nós. E guarde este segredo com a senhora: confesso que a aparição do pai me assustou um pouco, afinal para mim ele estava morto também e, de repente, assim... só pude vencer o medo e me acolher naquele abraço caloroso. Eu não sabia o que era aquilo há 7 anos, quem ouvisse diria que é conta de quem mente.

Sinto sua falta também, mãe. Dos seus bolinhos de chuva, da sua angústia em terminar de lavar e arrumar tudo para só então sossegar à mesa e almoçar, das suas gargalhadas à hora da novela... A senhora sente saudades de mim? Aqui onde estou minha consciência é minha principal amiga e vilã, às vezes me abraça e me faz dormir, às vezes me obriga a relembrar tudo o que procuro esquecer, e é nos momentos de silêncio, de madrugada – ou de dia, ou de tarde, porque do lado de cá o tempo é mais uma prova de efemeridade –, enquanto muitos estariam dormindo, que eu fixo meu olhar em algum ponto em que outros olhares não me alcancem e chamo pelo seu nome, pelo nome do pai, dos meus irmãos... E às vezes me apego em minhas crenças, no Deus que conheci ainda criança – terá ele mudado muito, mãe? – e busco me fortalecer acreditando que algo daquela criança ainda vive em mim. Vida, mãe... Tenho sobrevivido com duas vidas, a que arde e sangra de minhas veias, e a que não deixo voar de minhas mãos.

Preciso confessar que ainda sofro do mesmo analfabetismo de antes, aqui as coisas não mudaram essa lamentável condição, por isso estou ditando a uma pessoa muito querida - seu Zezinho, lembra-se? – o que meu coração mais deseja falar para a senhora. É ele quem tem feito a mediação para que nossos corações dialoguem, minha mãe. Não sei – e nem me preocupo em averiguar – como chegará diante da senhora o que brota da minha alma, já bastante cansada. Seu Zezinho é muito atencioso, sempre que peço ele comparece, senta-se à mesa, oramos juntos, com um copo d’água à frente do papel, e ele vai tornando legíveis coisas que, muitas vezes, nem em meus sonhos consigo entender bem.

Acredito bastante na bondade e na simplicidade deste homem, que nada me pede para me ouvir e, quando me ajuda, se diz o mais ajudado. Creia-me, minha mãe, enquanto houver pessoas como eu ainda haverão pessoas como seu Zezinho. Eu sei, eu sei, o mal não está aqui para justificar o bem, mas com este se relaciona, pois assim como não devemos praticar o mal (ou deixar de praticar o bem) pensando que isso possa ser revertido em bem por outra pessoa, da mesma forma tenho a certeza de que o filho desgarrado, por mais erros que tenha cometido, se buscar com todo o fervor a atenção paterna em busca de verdadeiro apoio, a achará, pois pessoas boas podem deixar de ser boas, mas um pai ou uma mãe jamais deixarão de serem pais, mesmo que o desejassem, não é verdade? Eu, que nunca tive filhos, minha mãe, arrisco-me a acreditar nisso, se posso crer em algo ruim, Deus não há de punir-me por acreditar em algo bom, não é mesmo? Ainda que alguns homens o possam.

Escrevo esta carta, minha mãe, esperando poder sair daqui o quanto antes e voltar a abraçá-la como há muito tempo não faço, provar seus bolinhos de chuva novamente, voltar a rir com a senhora diante da novela das oito, pedir a bênção antes de dormir – que me importa ser gente grande, não terei vergonha de ser sua criança novamente, eu a amo e desejo muito reparar ao menos parte desse tempo todo a distância da senhora e do mundo.

Seu Zezinho me disse, com todo o cuidado possível, que a senhora passou mal dia desses, que havia sido internada e tudo mais, mas que estava fora de perigo, eu acredito nele e por isso gostaria que a senhora viesse me visitar na semana que vem, deve ser o tempo que a carta levará para chegar às suas mãos. Meia hora, minha mãe, peço à senhora meia hora do seu tempo, sua presença me aliviará a pior das penas. Estou com muitas expectativas para o dia em que os portões se abrirem para mim, sabe, esses dias até me senti dignamente sua filha, me senti muito parecida com a senhora que, apesar deste maldito câncer, sempre foi o pilar de tudo em casa. Quando eu chegar aí tomaremos um sorvete, vamos fofocar um pouco, quem sabe, orar bastante pelo pai – por falar nisso, ele não veio mais aqui depois do acesso de choro da última visita, a senhora o tem visto? – eu já terei carregado minha cruz o suficiente e poderei ajudar a senhora a carregar a sua, a senhora não estará mais sozinha, eu prometo, não demorarei a chegar.

Com amor e aguardando seu abraço,

Clara.