Heróis dos Dias Inúteis.

Sinto cheiro de churrasqueira sendo acesa. A fome é tremenda e estou tremendo de fraqueza e de frio.

Meu nome é Arnaldo, só sei o primeiro nome, e, andando pelas calçadas, mais próximo aos portões das casas, sinto os odores saindo de lares quentes e familiares, alimentos sendo cozinhados, assados, fritados, carnes, lasanhas, coisas boas de comer num dia como hoje, frio e insensível de inverno, um domingo qualquer.

Ontem me deram um pedaço de pizza que provavelmente sobrara do jantar de sexta feira, e era sexta feira 13. Procurei um canto calmo no meio do campo de batalha urbano e das guerras travadas dentro de minha cabeça, e comi aos poucos, degustando cada milímetro. Estava frio e eu, enquanto comia, fingia que estava quente, limpo e que não era indigente. A cabeça faz cada coisa...

Logo em seguida estendi meu pedaço de papelão e dormi por algumas horas, até ser acordado por alguns “nóias” que me cutucavam com um cabo de vassoura e riam um sorriso estranho de quem estava chapado e querendo maldades. Abri os olhos e olhei fixamente bem no fundo dos olhos de cada um, eram dois, e quando deram conta de que eu não estava brincando, foram saindo murmurando alguns sons inaudíveis.

Os nóias são jovens ainda adolescentes que não se controlam na vida; vivem em função da maldita droga, nunca viram um livro na frente e nem sabem o que significam letras, palavras escondendo seus códigos, como diria Carlos Drummond de Andrade. Pobres nóias, tenho pena deles, mas não tenho dos deputados e nem dos senadores, muito menos do presidente desta porra.

A maioria dos nóias que conheço destas redondezas sobrevivem do crack e dos restos de alimentos deixados pelas panificadoras em grandes tambores de lixo que ficam nas esquinas. Adoram sequilos e sonhos podres. Querem o doce, quando sentem fome, talvez por um princípio de diabetes, e nem se importam com aquelas moscas verdes, as chamadas varejeiras, artrópode malditas que matam do dia pra noite alguns deles, que se estrebucham sozinhos em becos escuros, carregados logo cedo pela limpeza pública. Às vezes acho que a falta de higiene e condições para tanto matam mais que qualquer droga no mundo. Talvez esteja enganado, mas assim estou desde a concepção e não me importo mais com essas coisas de erros e acertos. Estou velho demais para isso.

Acostumei-me com a fome. Por vezes ela vem forte, causa umas náuseas a seguir e logo desaparece; mas depois de um ou dois dias a fraqueza derruba. Aí tem-se que comer algo, mesmo que sejam algumas folhas de árvores, cascas ou sair por aí pulando terrenos baldios em busca de goiabeiras ou pé de árvore frutífera. Já vi um grupo mendigos assando uma enorme ratazana. Estavam tão felizes quanto os normais que assam gordas picanhas em dias úteis. Em gargalhavam e tossiam ao mesmo tempo, na roda em volta ao fogo da rua sem saída. Passei por perto e inadvertidamente lhes adverti que comer aquilo poderia ser letal, o que fez com que soltassem mais gargalhadas, às quais ecoaram pelo beco, entrando na minha cabeça agora confusa.

Sono, sede e fome são situações corriqueiras para quem vive nos extremos da selva de pedra.

Aquela banda Zumbi Soul um dia cantou algo parecido, mas acho que de lá pra cá ninguém deu bola pra questão. E quem se importa?! Os domingos continuarão a passar e pessoas continuarão a morrer de fome na porta de suas casas...

Bob Dylan cantou a fome até ficar velho gagá, sem que alguém ouvisse além do que ele cantava em suas canções. Eles não estão somente surdos. Estão mais que mortos..., se é que existe alguma coisa além da vida. Chico Xavier, Mahatma Gandhi, Jesus Cristo, Anatole France, Buda e Aristóteles diziam que sim, que milhares de vidas viriam por aí à frente, mas até hoje nunca vi nem ouvi ninguém me dizer pessoalmente...

Ou melhor, um velho conhecido meu, quando deitado no leito de morte da santa casa pública do município de Acarajé do Sul, Paraíba, me disse, sussurrando, morrendo de câncer nos ossos, que um homem vinha caminhando em sua direção. Ele não sentia mais medo... Seu corpo foi doado para universidade local, para experimentalismos, já que ninguém o reclamara.

Fiquei muito feliz quando encontrei limpa na boca de uma lixeira uma lingüiça mista perdigão, tipo hot dog, suína, 240g, no saquinho, com prazo de validade vencido há apenas dois dias. Assei-a com o isqueiro emprestado do nóia coyote. Foi bom, dormi em paz, pensando em nós e nas nozes do natal de meus dez anos...

Savok Onaitsirk, 13 de agosto de 2.001.

Cristiano Covas
Enviado por Cristiano Covas em 26/06/2011
Código do texto: T3057717
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