Jocemar e a moeda (junho de 2011)

“Cara ou coroa? Cara”, Jocemar disse baixinho para si mesmo e repetiu em voz alta para os colegas, antes de atirar para o alto o pequeno artefato de metal que lhe escapou por último às mãos; caindo no chão da praça onde estavam todos, em uma manhã quente de verão. “Deu coroa”, apressou-se logo alguém a dizer. Este era Carlos, amigo de Jocemar.

No grupo em que se destacavam Jocemar e Carlos, cada um na casa dos 60 anos de idade festejando a bela manhã de janeiro com seus bonezinhos azuis havia, ao todo, seis velhinhos. Apesar de os dois amigos estarem vestidos a rigor para uma partida de gamão na praça (e para uma bela partida de bocha também), figurava a dupla como um “par de jarras” azuis.

De longe, se avistava os dois chapeuzinhos azuis de Jocemar e de Carlos, seus bonés cor-do-céu no centro de uma roda de amigos, ao redor de uma mesinha, na praça de bocha do bairro em que moravam todos. Era cedo pela manhã de um janeiro quente em que um grupo de idosos se reunia, ruidosamente, em torno de uma mesa e de uma moedinha.

Foi Jocimar quem recolheu a moeda do chão. Havia perdido no cara ou coroa; o que queria dizer que perdia a prerrogativa de jogar a partida de gamão. Não poderia escolher a cor das pecinhas, ou começar a partida, e o privilégio caberia então a Carlos, que não demorou a escolher as peças rosadas do jogo de gamão para a partida.

Como ficara acertado que seria Carlos a dar início ao jogo, foi o que fez logo em seguida. Parecia profundamente compenetrado, mas de fato, dava muito menos importância ao gamão do que aparentava na realidade. Cúmplice com Jocemar, também sentia pouca empolgação com o jogo, mas se comprazia ele com a mise-en-scène e a atuação quase dramática.

Em torno dos dois velhinhos, apenas mais velhinhos. No entanto, de vez em quando, não era raro que uma criança curiosa ou um jovem transeunte que atravessava o lugar parasse, observasse atentamente, pensasse um pouco, pusesse a mão na boca e suspirasse fundo para, finalmente então, expressar um belo sorriso de aceitação e prosseguir em sua caminhada.

Foi nesse instante que uma mãozinha pequena, no tamanho de duas nozes, pôs-se em frente aos olhos de Jocemar; abraçando-o carinhosamente por trás. “Adivinha”, disse uma voz de criança. “Adivinha quem é”, prosseguiu a menina. Jocemar é claro, sabia de quem se tratava, mas preferiu responder à vozinha: “É o jacaré”. E riram-se todos os que estavam em volta.

A partida de gamão já não era mais o centro das atenções. A pequena Marcela, neta de Jocemar, havia roubado toda a cena. Ele tomou a menina no colo, balançando-a de um lado ao outro, e não faltaram beijos para a menina. Disse ela ainda, “Eu quero a pratinha, vovô”, enquanto desvencilhava-se de dos abraços e sentava-se em um tamborete: “Pratinha.”.

Marcela tinha sete anos de idade e era a única netinha de Jocemar. Normalmente vinha saudá-lo na praça para ganhar uma pratinha e comprar doces. Também era Marcela a responsável por anunciar o almoço, por volta das onze e meia da manhã. A pratinha era a promessa de recompensa, enquanto os abraços eram o seu bônus. O bônus de Marcela.

Passavam-se das dez e meia da manhã e, nada de almoço agora. Aparentemente a visita da pequena Marcela era motivada apenas por amor, uma vez que a criança adorava brincar com o avô. “A pratinha, vovô!” disse manhosa. Jocemar vasculhou os bolsos em busca de uma moeda de um real e a encaixou na mão pequenina de Marcela.

Assim que sentiu que a moeda estava em suas mãos, a menina saiu correndo pela praça como um foguete, atravessando a rua, e entrando no supermercado. Na seção de doces, encontrou as paçocas de que gostava muito e estava acostumada de comprar quase diariamente com a pataca do avô. Funcionários já a reconheciam: “Oi, Marcela. Cadê o vovô?”.

Na praça, Carlos seguia vencendo a partida com o cada vez mais distante Jocemar. Resolveu chamar-lhe atenção, “Amigo velho, a menina volta logo do supermercado, então você vê se põe sua atenção agora sobre a mesa.”. Encerravam mais uma partida. Jocemar havia perdido consecutivamente por três vezes (três partidas), e Carlos lhe dava mais um “puxão de orelha”.

“Você está caminhando em nuvens”, completou Carlos. “Venci você por três vezes consecutivas” e insistiu, “A Marcela, como sempre, não deveria inspirar-lhe tantos cuidados.” “Está me ouvindo, Jocemar?” Mas o amigo velho não dizia palavra. De fato, ouvia atentamente o que lhe dizia Carlos com um sorriso de canto de boca, até que resolveu defender-se:

“A Marcela é a minha vida.” “Vê como me pede a pratinha?” “É muito inteligente essa menina...” “O que é que acha você, Carlos?” Pôs na mesa a pergunta e calou-se. Redarguiu-lhe Carlos que era quase meio-dia e o almoço em breve estaria pronto: “Lá está a menina, retornando calmamente do supermercado para busca-lo.” “Você tem mesmo sorte, Jocemar.”

Nesse instante, os velhinhos que circundavam a mesa de Carlos e Jocemar já haviam debandado todos dali para a pista de bocha. Mas não convidaram os dois (o par de jarras), o par de bonezinhos azuis, o duplo prodígio da praça do bairro, para jogar bocha. Os dois foram deixados de lado, displicentemente, o que secretamente os agradou muito.

Jocemar ergueu-se, pondo-se de pé, e abriu os braços. Sentindo a chegada da menina Marcela, inclinou-se um pouco para erguê-la e coloca-la no colo. Com a menina no colo, não teve nenhum receio em dizer, bem alto, “Minha alegria!” e “Meu anjinho”. O que quer fosse o amor, teria de ser algo assim, refletiu Carlos sem pronunciar uma sílaba, para não atrapalhar.

“Vamos almoçar lá em casa?” perguntou-lhe Jocemar. Almoçariam juntos na casa da filha dele, a mãe de Marcela; lugar este onde morava, em um quarto próximo dos fundos da casa e próximo do quartinho da menina Marcela; em um espaço onde se travavam infinitas brincadeiras diárias entre o avô e a netinha.

“Fica para a próxima, meu amigo de tamanha sorte” e “mande recomendações e abraços para sua filha” inteirou Carlos. Logo depois, Jocemar pôs Marcela no chão e lhe deu uma mão. Com a outra mão, a menina espremia um doce contra a boca. Antes que os dois desaparecessem de vista, disse Carlos: “nos vemos todos amanhã?” ao que redarguiu Jocimar: “Até!”.

Leo Marques
Enviado por Leo Marques em 11/07/2011
Reeditado em 13/07/2017
Código do texto: T3088991
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