Gabriel (abril de 2011)
“Gabriel, esta noite estou só. Você tão longe e eu como me esvaísse enquanto escrevo estas palavras. Quem sou? O que me distancia de você? Sua amada, Cláudia.” Escreveu o bilhete em um pequeno bloco de notas e deitou o papel sobre a pequena escrivaninha da sala do apartamento.
O casal já contava cinco anos de casamento, mas Cláudia sentia-se incapaz de atingir Gabriel. Não conversavam mais havia meses, desde que Gabriel iniciara no novo emprego. Como Gabriel trabalhava à noite, e Cláudia nos turnos diurnos, praticamente não se viam mais.
Um livro aberto sobre a cabeceira da cama denunciava que Cláudia vinha dedicando seu tempo à leitura, já há algumas noites. Um trecho estava sublinhado: “O verdadeiro lugar onde nascemos é aquele em que lançamos pela primeira vez um olhar inteligente sobre nós mesmos.” O livro era Memórias de Adriano, de Marguerite Yourcenar.
Cláudia era secretária e Gabriel era músico. Este ano não viajaram juntos porque Gabriel não encontrava tempo livre para uma viajem. O novo emprego na churrascaria lhe impedia de fazer planos de lazer e férias. Era cantor em uma churrascaria do centro da cidade.
O fato de não viajarem juntos era um problema para Cláudia, e o fato de não conversarem durante a semana, isso lhe aborrecia tanto que, de tristeza, por pouco não adoecia. Tinha por companhia apenas um gato e os livros que lia quando se sentia sozinha durante a noite.
Já eram cinco horas da manhã quando Cláudia decidiu não esperar pelo marido e resolveu tomar um banho e vestir-se para sua jornada de trabalho. Teria de estar no escritório às sete horas e o trajeto até lá era demorado. O bilhete sobre a escrivaninha haveria de dar resultado. Gabriel o leria.
Cláudia alimentou o gato, tomou café, e foi direto para o banheiro. A água do chuveiro correu solta sobre seu corpo magro, delineando sua silhueta agradável de ver: Era uma mulher bonita. Com a água, seus cabelos longos escorriam pelo peito nu enquanto o sabonete deslizava pelas costas até os pés. Era bonita de se ver.
Lá fora, o dia amanhecia. Os primeiros passarinhos da manhã faziam círculos ao redor das muitas árvores da rua. Depois, mergulhavam sobre a grama do jardim das também muitas casas da rua em busca de grãos para alimentar-se. O dia amanhecia quando Cláudia saiu do banheiro.
Tomou ao colo o gato, que acabara de fazer sua refeição matutina, e foram os dois para o quarto onde Cláudia se vestiria. Deixou o gato na cama a observá-la atentamente. Os dois eram cúmplices de uma noite não dormida: O gato, que se chamava Niki, não lhe tirava os olhos enquanto a mulher se vestia.
Ela pensava o tempo todo em Gabriel e o bilhete que deixara sobre a escrivaninha. De repente, lhe surgiu um desejo descontrolado de rasgar o bilhete. Mas conteve-se antes de alcançar a escrivaninha. Pensou “não conversamos há muito... Gabriel entenderia o porquê do bilhete... Não vou rasga-lo”.
Limitou-se a reler o bilhete e deitá-lo novamente sobre a escrivaninha de modo que Niki, o gato, não o alcançasse e assim não o destruísse. Sobre a cama do casal, o gato continuava a mirá-la incisivamente. Parecia compreender tudo o que se passava. Definitivamente, Cláudia e Niki eram amigos de infortúnio. Companheiros na longa madrugada insone.
Cláudia pensou em reescrever o bilhete. Começaria assim: “Gabriel, esta noite é sua...” e então tomou um papel e caneta para reescrever o bilhete. Teria muito a explicar ao marido, muito a dialogar. Releu então diversas vezes a frase esboçada no papel, mas desistiu de escrever-lhe e rasgou o novo bilhete.
Precisava apressar-se para não chegar atrasada ao trabalho. Não poderia escrever outro bilhete agora. E parou por uma segundo, já vestida, em frente a uma das janelas do apartamento, pondo-se a observar o espetáculo dos passarinhos a mergulhar em todas as direções da rua, levemente amarelada pelo sol que surgia.
Da janela, podia também assistir ao desfile de carros que timidamente cruzavam a esquina da rua, com sonolentos motoristas dirigindo em direção ao trabalho. Era melhor aprontar-se para o dia de trabalho, ou chegaria atrasada. Faltava-lhe ainda calçar os sapatos e tomar mais uma xícara de café.
Niki, o gato, agora se espreguiçava na janela da cozinha enquanto Cláudia o olhava em sinal de desaprovação. Desaprovava que lhe fizesse companhia, por toda uma madrugada, insone. “Se ao menos alguém aqui dormisse...” balbuciou para o gato Cláudia, pelo canto da boca, enquanto sorvia o café.
Mas sabia que não era verdade, pois de fato, sempre apreciava muito a companhia do felino. Quando viajavam juntos, Cláudia e Gabriel, era-lhe sempre doloroso distanciar-se do gato, deixa-lo em companhia da mãe de Gabriel durante as férias, ficar longe do bichinho. Passou a mão sobre o gato em sinal de afeição. Respondeu-lhe “miau” e lambeu as patinhas.
Seis horas e quinze da manhã e Cláudia lançou um último olhar sobre o bilhete na escrivaninha. Pegou as chaves da porta do apartamento, beijou o gato, e abrindo um sorriso para Niki, desejou-lhe um bom dia. Lembrou-lhe, com mais um afago, que Gabriel não demoraria muito a chegar para fazer-lhe companhia. Chegaria em breve.
Descendo cuidadosamente os três vãos de escada do edifício encontrou a rua agora mais movimentada, com motoristas por todos os lados. Caminhando pela calçada que ladeava a rua, não demorou a chegar ao ponto de ônibus. Estava repleto de passageiros à espera. Sentou-se em um banco e não pôde evitar pensar novamente em Gabriel.
Encontrá-lo-ia, o bilhete? O que pensaria de suas palavras? Precisavam realmente conversar, precisavam de um tempo para os dois (pensou). Depois, levou a mão no bolso do vestido e contou o dinheiro para o trajeto até o trabalho: “Um, dois, três reais”. Despontava na esquina o ônibus de Cláudia e, ao aproximar-se, fez o sinal. Logo estava dentro. “Outro dia nasceu...”.