O PERDÃO

O inverno caíra espalhando geada pelos pastos queimados. O sol se escondera a-trás de nuvens escuras. Perto da porteira, o ipê explodia de flores arroxeadas.

Siá Inácia não se cansava de atender as pessoas que vinham em busca de noticias sobre a doença de Nhô Pedro. No fundo da casa, as visitas se revezavam, diante das taças de vinho, enfileiradas sobre a mesa da cozinha. Cada um que chegava, querendo saber da situação do doente, recebia sempre a mesma resposta: “Não passa deste inver-no...”

Embora sua agonia se prolongasse por vários dias, contrariando a expectativa de todos, Nhô Pedro não morria. Padre Ângelo já lhe ministrara os sacramentos da extre-ma-unção. Toda casa se preocupava. Siá Inácia andava soluçando pelos cantos. Até o canário emudecera encolhido no poleiro, ao alto da gaiola. Afinal de contas, por que Nhô Pedro não morria?

A cantiga de um sabiá entristecia ainda mais o silêncio da tarde morrediça nos morros que rodeavam a cidade. O bambuzal balouçante parecia rezar de mãos postas, enquanto o sino da capela anunciava as ave-marias.

Ao mesmo tempo que se estranhava a inacreditável resistência de Nhô Pedro, di-versas crenças, já arraigadas na tradição religiosa, se espalhavam, à boca pequena. Na certa, não conseguia morrer porque não era digno de entrar no céu nem merecia ser re-cebido no inferno, afiançavam alguns. Sua alma estava destinada a mourejar no purgató-rio, comentavam outros. Até mesmo a intervenção do padre Ângelo, a explicar ‘o signi-ficado dessas crendices’, apelando para os passos da bíblia, parecia provocar ainda mais interpretações contraditórias. Além do mais, como o purgatório seria simplesmente um interregno, segundo esclarecimento do padre, não poderia servir-lhe de abrigo, pois não havia motivo para alguma sentença divina, só porque a alma de Nhô Pedro teimava em não lhe deixar o corpo.

A fumaça da chaminé se espalhava devagar na calmaria que inundava aquela ma-nhã. Um bando de periquitos barulhentos se reunia na mangueira, carregada de mangas maduras. A voz do sino da capela era um convite para a missa que ia ser celebrada pela alma do moribundo. Os devotos se ajoelhavam diante da imagem do santo padroeiro. Como um canto chão monótono, uma ladainha ecoava pelos arcos da capela, enquanto o padre começava a distribuir a hóstia, para os fieis ajoelhados nos degraus, na entrada do altar-mor. A fumaça, espalhada pelo turíbulo, deixava no ar um cheiro de incenso.

Tudo havia começado quando Nhô Pedro descobriu que sofria de diabetes. De tan-to levar a sério o regime prescrito, acabou alvo de gozação dos amigos, também atingi-dos pela mesma doença. Por isso (era o que todos acreditavam), enquanto os amigos iam morrendo aos poucos, ele resistia. Porém, essa resistência, apesar dos cuidados, não impediu que a moléstia fosse se agravando, com todas as sequelas previstas. Assim, já se encontrava largado na cama, há mais de quatro anos, condição provocada pelas per-nas amputadas e um derrame que prendera a língua e lhe turvara a vista, tornando-o mudo e cego. Nas frequentes recaídas, como ele rezingasse e se agitasse angustiado, todos acorriam tentando descobrir algum desejo ou procurando atenuar alguma dor.

Certa vez, para surpresa e susto de todos, pois tinha sido um anticlerical, a vida toda, Nhô Pedro, com o semblante sereno, se pôs a ouvir a leitura da bíblia que um de seus filhos folheava devagar. Enquanto isso, surpreendentemente, a seu pedido, outra pessoa fora tentar convencer o padre a vir visitar o doente. Outra vez, embora fosse pro-ibição médica, lhe trouxeram um pedaço de carne de porco assada, pois como sabiam que a morte era certa, não custava nada atender sua última vontade.

Enquanto o vento amornava a tarde que teimava em rodear a casa, o papagaio se agitava na enorme gaiola dependurada no alpendre. Anjos e orixás pintavam de azul a nesga de céu desvanecente no horizonte.

Demorou muito tempo para se desvendar toda aquela alegoria e traduzir suas in-terpretações. Às vezes, era um riso sardônico, acompanhado de grunhidos, que queria dizer ‘não’. Outras vezes, para dizer ‘sim’, aparentava um riso intermitente, repuxado de um lado a outro da boca, formando um bico no lábio superior.

Tudo morria atrás do morro, juntamente com o sol que se escondia lentamente, riscando o céu com faixas vermelhas. Depois da ceia, regada a vinho, oferecida ao redor do fogão, recomeçavam-se as rezas murmuradas que a fumaça da chaminé empurrava para o céu.

O que encantou Siá Inácia, certa vez, foi descobrir a simbologia do riso angelical, acompanhado de repetidas piscadelas. Foi durante o banho. Cada vez que lavava o sexo de Nhô Pedro, ele compunha aquela expressão, que começou a se repetir todas as vezes que Siá Inácia entrava no quarto. Ela então fechava a porta e ficava explorando o sexo que lhe dera tantos prazeres, enquanto Nhô Pedro fungava deliciado.

Naquele dia, uma chuva gelada tomara conta do terreiro e umedecia os pastos. A corredeira do ribeirão tomava fôlego e começava resvalar o mato que crescia nas mar-gens. Uma enorme tristeza se dispersava por entre o burburinho do fundo da casa.

Além da moléstia que mantinha Nhô Pedro estendido na cama, as benzedeiras a-cabaram descobrindo que uma doença misteriosa, que matava os enfermos, em pouco tempo, tomara conta de seu corpo. Nem com todas as rezas e mandingas e encantos, ninguém se lembrava de algum doente ter resistido mais do que duas semanas. Mas, embora já se passassem mais de cinco semanas, Nhô Pedro não morria. Por cinco vezes lhe puseram nas mãos a vela benta, no meio das orações de recomenda.

A lua já não tinha mais sentido naquelas noites insones de inverno. Os morcegos ziguezagueavam tontos, num ambiente de luzes acesas. Até o relógio da sala parecia ignorar as horas. A noite parecia não ter fim no meio de nuvens tiritantes.

Para surpresa de todos que se aproximavam pressurosos, no meio da agonia a ron-dar permanentemente, Nhô Pedro, às vezes, se tornava impaciente, como se desejasse alguma coisa que ninguém conseguia descobrir. E então, se punha a reclamar desespe-radamente se enrolando na cama. Abanava a cabeça, mastigando rezingas desconsoladas. No meio de gorgolejos desajustados e confusos, medrava uma desesperada irritação, diante do ambiente recheado de dúvidas e expectativas. Em presença de toda essa agita-ção, aumentava a especulação sobre alguma expressão emocional, própria dos moribun-dos. A presença da morte sempre propicia manifestações imponderáveis.

A água da chuva se dispersava pelo terreiro e empoçava perto da cerca, onde se concentravam as bananeiras. Um vento gelado começou a descer pelos morros, a pre-nunciar geada. As andorinhas se acotovelavam nos fios elétricos. Mesmo os filhotes da suindara, moradora da torre da capela, dormiam sossegados.

Até que um dia, naquela angústia, repleta de promessas, Siá Inácia saiu do quarto e chamou toda a família. Diante da incredulidade estampada nas faces, anunciou que havia conseguido decifrar a última vontade do doente. À medida que Siá Inácia ia des-dobrando o caso, apareciam nos rostos evidentes sinais de surpreendentes lembranças. Finalmente, descobrira que o doente não morria porque necessitava do perdão do com-padre Inocêncio. O mais difícil, porém, foi convencer o compadre, pois havia uma grave e antiga desavença que separara os dois amigos. Assim, com todos os cuidados possí-veis, era preciso convencer o compadre Inocêncio que Nhô Pedro dependia de seu per-dão, para conseguir morrer.

Lá fora, o sol teimava em se livrar das nuvens que carregavam a chuva para os lados do barrocão. Uma brisa gelada começava a balançar as folhas da bananeira. Uma sombra gostosa refrescava o alpendre.

Coçando a barba, diante das pessoas que lhe contavam a novidade, Inocêncio, completamente pasmo, parecia não acreditar no que ouvia. O mundo de lembranças que aflorava naquele incontido acesso de riso, o impedia de conseguir escutar com atenção. Como perdoar o amaldiçoado que, em nome da amizade, entrara em sua casa e seduzira sua mulher! E, pior ainda, seria perdoar a pecha de ‘corno manso’ que acabou levando, porque não tivera a coragem suficiente para matar a ambos, como era o costume de la-var a honra. Enquanto se equilibrava na cadeira de balanço, um sorriso maroto ficou embalando seus lábios. Bem que poderia deixá-lo apodrecer em vida, se bem que nem assim pagaria pelo que fez a um amigo que o estimara deveras. E o pilantra ainda vivia a se blasonar pelo feito...

Levantou-se, foi até à janela e no entorpecimento que tomou conta de seu corpo emergiram todas as lembranças que teimara, a vida toda, em esquecer. Encostou-se ao peitoril e abanou a cabeça. Não há como perdoar um filho-da-puta como esse!

Tudo começava a se enrolar no dia que amanhecera chuvoso. De novo, a água go-tejando do telhado ficava a tilintar na calçada. O céu cor-de-cinza espalhava desconso-los na permanente inquietação que se dependurava nas conversas sussurradas.

Inocêncio coçou a barba novamente. Suspirou fundo e bocejou longamente, emba-lado na cadeira de balanço. Os olhos fechados e o cigarro dependurado no canto da boca provocavam mais recordações. Isso tudo ficara no passado. Na verdade, embora fosse difícil esquecer tal afronta, a raiva e a vergonha esmaeceram com o tempo. Os costumes foram se transformando. Os mais novos se preocupam, agora, com suas próprias histó-rias que alumbram suas lembranças. Os mais velhos acabaram apagando da memória um fato que poderia acontecer ou estar acontecendo a qualquer um deles.

Inocêncio se levantou da cadeira de balanço e caminhou pela rua estreita. Ainda zunia em seus pensamentos a decisão tomada. As crianças que brincavam na calçada correram assustadas, atropelando as galinhas que ciscavam numa lista de grama, perto da cerca. Na esquina, um ipê espalhava flores amarelas pelo chão.

Diante da expectativa e incredulidade de todos, com passos tardos, Inocêncio se dirigiu a casa de Nhô Pedro. Sem pedir licença, entrou no quarto, debaixo do silêncio que brotou da respiração suspensa de todos os presentes.

Quando saiu, arrumou o chapéu contra o sol que batia em seus olhos e ficou ou-vindo, de longe, o choro das pessoas que se amontoavam em redor do quarto.

E assim, Nhô Pedro pode, finalmente, morrer em paz!

carlosmorais
Enviado por carlosmorais em 13/07/2011
Código do texto: T3093653
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