LABIRINTO

Assisti na tv que um homem foi atingido por um raio e sobreviveu. Depois, ouvi vozes ao telefone, como se estivesse aguardando alguma ligação. Como se alguém houvesse ligado! Passeei pela casa, acabrunhado. Um gato pulou a janela, parou no parapeito, olhou-me de soslaio, sorrateiro e deu meia volta. Ainda o vi, perder-se sobre os telhados. Uma luz vibrante iluminou por completo a cena. O sol se punha tão rápido! Afastei-me da janela, voltei para a tv. Estava desligada, mas tinha a absoluta certeza de alguém falava lá dentro, naquela caixinha de luz. Será que voltarão? Será que o telefone tocará novamente? Há meses, não vejo meu filho. Está um rapaz e tanto! Cabelos pelos ombros, hoje quase não o reconheço. Estou envelhecendo aqui, sozinho, nesta casa. Se ao menos, pudesse sair, afastar-me deste labirinto que me oprime, desviar os ouvidos dessas vozes indecorosas que me sussurram coisas obscenas. Sei que não posso. E tenho medo de afastar-me. Aqui estou seguro, mesmo que os gatos pulem as janelas, atravessem os telhados, deslizem pelos terraços e roubem minha comida. Compartilham com as pombas as minhas migalhas. Só a elas me dirijo. Elas bicam a minha vidraça. Perscrutam o espaço, andam em casais. Já me conhecem, se entregam, seguras. Eles me observam de longe, esperam um descuido para ingressarem na janela, se imiscuírem na minha vida. Tentam me seduzir. Às vezes, os odeio. Hoje estou menos ansioso. Não me preocupo tanto com eles. Não fossem estes sons estranhos, esta gente que fala nos meus ouvidos, que me diz coisas que não quero ouvir. Insistem que eu fale, sem se importarem com o que tenho a dizer. Reprovam, certamente, o meu comportamento. Volto para a sala. Espio a tv desligada e me deito no sofá, estirado, pernas soltas, caídas para o lado. O raio atingiu o homem e ele não morreu. Será que teve algum dano? Que o paralisasse, que o impedisse de falar, ou que talvez o deixasse cego, surdo? Mas ele sobreviveu. Como eu. Sem me expressar, sem compartilhar meus sentimentos. Eu sobrevivi. Meu filho deve vir hoje. É provável que apareça daqui a pouco e chute todos os pombos de minha janela. Depois se afastará, como sempre, dando um tchau distraído, a um homem qualquer que nem parece seu pai. E não terei forças para impedi-lo, para falar-me de minhas frustrações, minhas pequenas infelicidades diárias, minha dose de raiva, de agonia, de aflição. Minha vontade de morrer. O telefone toca. Deve ser ele, avisando que não virá. Afinal, é jovem, tem de viver a sua vida, não perder as oportunidades. Encontrar-se com os amigos, tomar um chope. Mas, quem sabe, lá debaixo ele olha para a minha janela, dá uma espiada nos pombos, e imagina que estou por ali, assistindo a tudo. Talvez ele beba também a minha saúde. Se pudesse, estaria lá, com ele. Conversaria com os seus amigos, falaria das coisas importantes da vida, como este momento que estaria vivendo, ao lado de meu filho. Mas quem me escutaria? Quem acharia importante eu estar ali, junto, ao lado de meu filho? Teriam, por certo, assuntos mais urgentes, mais pontuais. Falariam de futebol, mulheres, talvez política. Ririam muito de tudo e de todos. E seriam felizes. Este telefone não pára. Ainda nem levantei para a atender a primeira chamada e ele voltou a tocar de novo. Como é difícil sair deste sofá. É macio, aconchegante, embora sinta as molas nas costas. O pano está tão velho que se avista as fibras, os fios trespassados, pequenos buracos que se formam. E as molas mais parecem costelas de gente magra, expressando toda a miséria de suas vidas. Dói-me as costas, custa-me levantar, enfiar os pés nos chinelos, dobrar os joelhos, segurar-me firme à mesa que tenho ao meu lado. Mais um pouco, estarei lá, ouvindo o meu filho, esperando que me convide, quem sabe, assistir um filme, jogar xadrez ou apenas conversar, longamente, como nos velhos tempos. Tempos em que ele era menino e eu o fazia sonhar. Sonhava com mundos distantes, estrelas que se mexiam no céu, nuvens que se enfeitavam para guarnecer a noite. E com ele, eu sonhava junto, olhando o mesmo céu que o fazia viajar. Quem sabe me convida para viver as suas fantasias, olharmos as estrelas, aqui, da minha janela, esquecidos destes terraços escuros, destes telhados tisnados pela poluição. Quem sabe ele virá aqui e me convidará para sair, tirando-me desta pasmaceira, fazendo-me viver a vida que já foi minha. Talvez, mergulhar um pouquinho naquele chope, jogar conversa fora, passear pelas calçadas sem compromisso, observar a natureza. Ah, pensei tanto nestas coisas, arrastei tantos estes chinelos pela casa, que o telefone parou de tocar e nem tive tempo de atender. Pela segunda vez! Mas, vou sentar aqui, ao lado, esperar. Ele deve estar ansioso para ver-me. Nem vai me ligar, pelo contrário, vai entrar por aquela porta, sorrindo, empurrando com a mão os cabelos que lhe caem na testa e se aproximando, me abraçará. Dirá baixinho que não me esqueceu e que sairemos daqui, esqueceremos os gatos, os pombos, a televisão que fala sozinha, as vozes estranhas do telefone sem fio. Me pegará pelo braço e sairemos por aí, chutando pedra, como bons amigos: pai e filho na contramão da vida. Eu não disse? Agora não me enganei, a porta está se abrindo, a maçaneta gira devagar, do jeito dele, centrado, seguro, sereno. Empurra a porta lentamente para me fazer uma surpresa. E eu fitarei o brilho dos seus olhos e nada me impedirá de ser feliz. Não é ele. Dói-me a cabeça, porque esperei demais. Quem é este homem que me traz um prato de sopa, por que se veste de branco como um enfermeiro? Por que me chama de vô?

Gilson Borges Corrêa
Enviado por Gilson Borges Corrêa em 04/12/2006
Reeditado em 05/12/2006
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