AINDA SOMOS SEIS MAS JÁ FOMOS FELIZES - Parte I - Cap. VIII

Foi Jesus quem disse: "Vinde a mim todas as criancinhas".

Mas como Ele não fez Teologia e não se ordenou padre e nem podia estar à frente de uma igreja, resolveram deixar esse cargo, o de padre da nossa igreja, que ficava ao lado do Grupo Escolar e na frente do Jardim de Infãncia, nas mãos do Padre Luíz mesmo, um portento, holandês, branquelão, olhos azulinhos. gordo, feliz e bravo, muito bravo. E ainda por cima ele pensava diferente de Jesus. Nada de criancinhas pra ele. Essas, com seus respectivos pais, é claro, podiam assistir à missa do lado de dentro de uma salinha fechada, com parede de vidro dando frente para o altar e auto-falantes nos quatro cantos que era pra ninguém perder o sermão.

Era lá que nós ficávamos, porque o pai e a mãe, tinham era uma escadinha de filhos, de modo que mesmo eu já me sentindo uma mocinha, cada qual tinha um rebento nos braços e a mãe já guardava outro na barriga - o Lilinho.

Por isso tudo, de onde eu ficava, nunca dava pra enxergar a hóstia e eu então imaginava ela uma coisa quadrada, super branca e brilhante, meio parecida com um pedaço de maria-mole, e pensava também que ela devia ter um gosto de bolo feito no céu. Sim, porque a mãe fazia uns bolos deliciosos que a gente comia a semana inteira e eu pensava que a hóstia tinha que ser ainda mais gostosa e pra ser assim, só mesmo sendo feita no céu.

Um dia, não me lembro bem como, acho que foi depois do catecismo que eu odiava, me vi na fila da hóstia, com o coração disparado e com medo de não saber o que fazer. Me disseram que era o dia da minha primeira comunhão.

Eu não percebi que o Tarcísio vinha logo atrás de mim, achando que podia também, coitadinho.

Eu era esperta, então, fiquei ao lado da pessoa que estava na minha frente e vi que só abrir a boca, mas vi também, com uma decepção gigante, que a hóstia era uma coisinha redondinha e pequenininha e que de brilhante, não tinha nada. Era bem encardida, até!

O sacristão, o "seu" Osmar, que era nosso vizinho e muito amigo do pai, colocou um pratinho embaixo do meu queixo e o Padre Luíz me deu na boca o "Corpo de Cristo". Levei um susto, porque eu conhecia o Corpo de Cristo lá do crucifixo de casa e podia jurar que não era daquele jeito. Êta, padre mais mentiroso! E depois foi aquela coisa grudando no céu da boca e eu sem saber o que fazer. E foi assim, de repente, que eu descobri, ali, na frente do altar, porque é que todo mundo é doido por Jesus Cristo. Não era porque Ele era bonzinho não. Era porque Ele era gostoso, muito gostoso mesmo. Tinha o melhor gosto da infância. Tinha gosto de casquinha de sorvete!

Enquanto eu percebia tudo isso, acontecia uma confusão ali mesmo, na fila do "Corpo de Cristo Casquinha de Sorvete".

Gente! O Tarcísio, sempre um santinho, peitando padre e sacristão, pra poder também experimentar Jesus e o sacristão dizendo que aquele não, ele não tinha idade.

Engraçado! Até sete anos a gente era anjinho sem pecado, depois já era pecador e só sendo pecador é que a gente podia ganhar o Corpo de Sorvete, digo, o Corpo de Cristo.

O Tarcísio ficou uma fera e ficou também parado ali, xingando pra quem pudesse ouvir: "Ô padre "fé-da-puta", ô seu Osmar "fé-da-puta"!, num refrão sem fim.

Puxei ele de volta pro quartinho e no caminho, fui consolando: "Num liga não que você não perdeu nada. Quer saber porque as pessoas ficam com essa cara fechada e triste quando comem a hóstia? É que o padre avisa pra todo mundo que é o Corpo de Cristo e já faz pra mais de mil anos que Ele não toma banho. "Morô"?

Pela carinha que ele fez, acho que ele "morô" sim e eu pude desfrutar em paz da minha casquinha de sorvete celestial por mais de dois anos, quase três, que o Tarcísio teve que ir na marra, não queria de jeito nenhum fazer a tal primeira comunhão.

Um trabalhão!

Isabel Damasceno
Enviado por Isabel Damasceno em 18/07/2011
Reeditado em 18/09/2019
Código do texto: T3102329
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