ANJINHOS NEGROS

As crianças brincavam na avenida das Caneleiras. Corriam, jogando bola, descalços e quase desnudos. Soltavam pipa ainda o sob o declinar do sol vermelho no horizonte.

Dona Clara compartilhava da alegria dos meninos que moravam na favela do outro lado da rua, negrinhos em sua maioria, feito pardais, gorjeando intermitentemente.

E quando chegava a noite, que deveria ser aconchegante e calma para todos, muitas vezes vinha trazendo consigo apreensão para os moradores, tanto da favela, quanto dos vizinhos com mais posses, que moravam, para quem vinha do centro da cidade, do lado esquerdo da rua.

Clara acompanhava tudo. Pais que chegavam embriagados, querendo agredir a esposa e a família indefesas. Mães que, muitas vezes solteiras, conhecendo a figura boa e compreensiva de Dona Clara, atravessavam a rua para lhe pedir leite para a mamadeira, um remédio para a febre alta de alguma criança, ou até socorro para a locomoção de alguém até um hospital.

E assim se passaram alguns anos. Muitas e muitas vezes a bola da brincadeira das crianças caiu em seu quintal e ela nem quis devolver. Achava-se meio responsável por eles. Queria doutriná-los.

Sempre que ia até o Padre Antonio, este lhe fornecia cestas básicas, leite e remédio para ajudar com aquelas crianças.Doces, guloseimas e presentinhos no natal, cedidos por algumas almas boas e anônimas.

Era uma correria! Dona Clara sentia-se cansada às vezes. Com mais de sessenta anos e tantos afazeres! Cuidar de tanta criança carente! Às vezes pensava que suas forças poderiam acabar a qualquer momento. Mas sentia-se feliz e renovava suas energias no sorriso dos menininhos negros que rodeavam o portão de sua casa.

Um dia veio finalmente a notícia que todos aguardavam ansiosamente. A prefeitura elaborou um plano para acabar com a favela. Forneceria em condições financeiras plausíveis, casas de alvenaria aos moradores e todos se mudariam para um lar mais digno. E, para a alegria dos moradores do nobre bairro do outro lado da rua: longe dali.

Não demorou, começaram a chegar os caminhões cedidos pela administração pública. Aos poucos, todos foram se mudando e os barracos sendo desmanchados.

Em alguns dias já pouco se via os menininhos de caras sujas e pezinhos descalços correndo e gritando. Em poucos dias, quando a noite começava a declinar, trazia consigo presságios de um grande vazio para a rua antes tão alegre.

Por fim todos se foram. As casinhas de madeira desapareceram e vieram os engenheiros com as máquinas executando projetos, que transformariam todo aquele espaço em conjuntos residenciais de alto padrão e um grande shopping center.

Dona Clara viu sua vida declinar com a mesma tristeza que existia agora na rua. Suas visitas ao padre Antonio, agora eram menos freqüentes, porque já não via mais sentido nisto. Não precisava mais do leite, nem das cestas básicas ou remédios que a igreja lhe fornecia.

Ela, que até então raramente procurava um médico, tinha agora problemas com sua pressão arterial e diabetes, sempre em níveis altos, além das constantes dores.

Padre Antonio vendo certa vez a tristeza em seus olhos, buscando amenizar, falou com brandura:

- Dona Clara, nós não podemos ir contra a ordem natural das coisas. Era imprescindível que se erradicasse a favela e se desse melhores condições de vida àquelas pessoas.

Dona Clara balançou a cabeça. Ela concordava plenamente.

- A senhora está assim – retomou o Padre - porque os seus anjinhos negros não estão mais por perto. Mas eles ainda existem e a senhora sabe onde estão. Eles estão bem.

No caminho para casa, ela pensou muito naquelas palavras. Talvez estivesse apenas com saudade, sentindo falta daquelas crianças.

Chegou, pegou sua bolsa com um dinheirinho, passou no mercado, comprou muitas balas e bombons e tomou um ônibus para o novo e ainda precário conjunto residencial. Lá chegando, foi recebida com a mesma alegria pelos meninos e meninas, todos descalços. Distribuiu os doces, beijou-os e chorou.

No dia seguinte, em uma consulta de rotina, seu médico constatou que seus níveis de pressão e diabetes haviam caído significativamente. E suas dores praticamente se acabaram.

- A Senhora está seguindo certinho a dieta, dona Clara, muito bem! – disse o médico.

Fitou então o doutor com seus olhos ternos e concluiu que talvez ele não soubesse que existem certas doenças que estão na alma. E que não existem medicamentos ou regimes que possam curar. A cura só pode ser realizada muitas vezes por anjos que nos rodeiam.

Dona Clara estava agora bem de saúde.

Ela tinha novamente seus anjinhos negros.