A Primeira Profecia - A Bolha

Capítulo II - A bolha

- Crianças, Sr. Absalon, muitas crianças inocentes; mortas sem nenhum sentido...

Junto ao umbral do apartamento, no último andar do antigo prédio, com o rosto em sentido contrário a única luz tênue da sala, Cinério falava sem se virar. Ali era seu lugar preferido no “escape do inferno”, no qual permanecia horas com o olhar distante. Através da vidraça empoeirada, diariamente, nos contornos da aresta vermelho sangue, mesclada com a tonalidade cinzenta do tom da terra ressequida, ele tentava vislumbrar algum sinal de vida além do horizonte. Mas, há muito tempo, nenhum ser vivo se movimentava entre os contornos do solo ressequido e o céu acinzentado com poeira tóxica. Há mais de uma década, não se tinha notícia de um ser vivo e nenhuma gota de água caia naquela região. Todos os dias, sem hora marcada, um vento seco e raivoso, envolto em uma neblina de poeira de areia, chegava sem hora marcada.

- Todas sacrificadas por ações sangrentas, advindas da alienação de pessoas fundamentalistas que praticavam ações planejadas com um objetivo de caráter, estritamente, político...

Enquanto falava, seus cabelos grisalhos formavam uma silhueta emaranhada de encontro à vidraça de proteção. Um crispar raivoso nos seus olhos começava a toldar o compasso das suas palavras. O silêncio era cortado apenas pelas respirações ofegantes, enquanto os olhares se entrelaçavam entre perguntas silenciosas sem respostas.

- Dor e desespero! A forma mais covarde de constranger o lado mais fraco... - Nenhuma réplica, apenas semblantes constrangidos pela força das palavras.

- Crianças, Sr. Absalon; muitas crianças inocentes...

Os rostos estavam voltados numa única direção, juntos com as respirações ofegantes, tornavam o ambiente mais pesado, deixando um silêncio mórbido parado no ar. Cinério buscava um único rosto, procurou olhar nos olhos do seu ouvinte, querendo, a qualquer custo, sentir a reação ante as suas palavras. No teto, um velho ventilador se arrastava em desgastadas buchas antivibratórias, procurando, sem resultado, atenuar a temperatura insuportável do calor sufocante,

- Esse era o preço do seu paraíso de setenta e duas virgens, Sr. Absalon, no fundo, negócios; apenas negócios...

Seu olhar de soslaio parecia querer condenar a reminiscência das atitudes de um passado distante.

- O fanatismo que aniquilou inocentes no passado tinha apenas um objetivo, Sr. Absalon: autonomia nas negociatas particulares. Não queriam interferência de nenhum poder exterior...

Aquilo mais parecia um monólogo interminável. Apenas as paredes rebatiam as palavras à espera de um comentário sobre o ponto de vista irrefutável do velho coronel do exercito brasileiro. Quando parecia vir mais uma enxurrada de palavras solitárias uma voz soprano cortou os ares:

- Muitos lutaram pela sua fé, Sr. Cinério Tinham uma causa, diferentemente de outros; infelizmente, todas as ações nos levaram a este caos.

- Não há justificativa para massacres de inocentes. Nenhuma busca de poder, nenhuma fé justifica as atrocidades perpetradas através do terrorismo... Nenhuma fé, Sr. Absalon! Fé no palpável ou no desconhecido.

Cinério deu de ombros. Um semblante de nojo tomava conta da sua face toda vez que uma pessoa tentava justificar as atrocidades praticadas em nome de Deus. “Que Deus é esse que permite tais ações em seu nome?” Com a alma em tormento, tirou um pouco a vista das ondas de areia e pousou a visão na parede salpicada de cimento ao seu lado direito. Propositadamente, parecia querer ouvir a continuidade da opinião de Absalon. Enfim, sentia ter conseguido seu objetivo: tirar um pouco do peso da sua consciência e encontrar outros culpados para a condição de vida a que chegaram.

- Sejamos realistas... – uma pausa interminável acompanhada de uma olhadela por todos os lados. - Temos de conviver com o resultado das nossas ignorâncias ou do nosso pedantismo intelectual.

O tom zombeteiro e pausado deixava um espaço proposital para a discordância de quem estava na sala, mas ninguém se manifestava.

- Além da nossa falta de sensibilidade com o planeta em que vivemos, estamos volúveis aos efeitos da natureza – continuou Cinério, calmamente. - Sofremos a conseqüência dos nossos atos de ontem, atos impensados, egoístas; meramente voltados aos interesses da nossa ganância humana, seja ela em nome dos nossos próprios interesses ou em nome de instituições detentoras do reino dos céus. Ao homem desta terra já não resta mais esperança. A flora não mais se sustenta diante das intempéries da natureza.

Agora, era o sentimento da razão atual de cada um, camuflado de dono da verdade, tentando culpar a todos; menos a si. Filosofia vã diante da visão da desgraça premeditada. Às suas frentes, apenas o caos da certeza: a natureza não mais se regenerava; castrada do dom de gerar vida - castrada por eles: homens donos do poder, donos ditadores de verdades absolutas em nome de uma fé cega, irracional.

Todos se calaram de repente. Um silêncio constrangedor voltou a reinar entre as quatro paredes. Cinério continuou em frente ao umbral. Visualizava um quadro de tonalidade cor cinza-chumo - pigmentado com risos brancos de escárnios. Cópias das carcaças de outras terras, agora em solo urbano; bem à sua frente... Sorrindo! Ossos de antigos animais de estimação caçoavam da inutilidade da espera e da inércia... Zombando da seda dos grisalhos de seus cabelos!

- "Chuva... chuva... chuva” - Pensamentos de todo dia; inúteis ordens. O trunfo de antigos poderes sem nenhuma valia na atual negação da natureza. A vida sendo esvaída do bem mais precioso para a existência humana. Uma negação de morte...!

Estreitando-se ao lado de antigos prédios monumentais, as últimas colunas de aço teimavam resistir ao tempo. Sob os escombros da tecnologia inútil, a ferrugem, pouco a pouco, corroia as engrenagens do simbolismo de antigos donos do poder, corrompidos pelo capitalismo oportunista. Agora, apenas batidas surdas faziam ecos nos corredores vazios. O abrir e fechar de janelas entregue ao sabor do vento; não mais resguardando as intimidades dos articuladores ferrenhos em busca do ganho fácil.

- "Água... água... água.....” – Inúteis pedidos. Triunfo do caos da ganância humana, ferrando a fogo o solo sagrado da sobrevivência. Vitória de morte...!

À frente dos escombros – no centro do pátio –, acima da altura da muralha de mais de dois metros de altura, uma placa de néon, paulatinamente, rumava ao chão; à mercê da sustentabilidade de antigos cabos de conexões: retrato da simbologia de ultrapassados poderes que teimaram em não cair diante dos seus próprios erros. A sujeira impregnada sobre os contornos do néon conseguia decifrar a ironia do que restou da "ruinaria industrial":

FERTILITY – O FUTURO ESTÁ AQUI!

O silencio do apartamento foi cortado pelo som robótico vindo do fundo do galpão. Fala arrastada, gutural. Repetição de todas as tardes, sem interferência dos poucos não conectados pela teia tecnológica que se alastrou nos últimos anos de avanços científicos. Eram apenas gestos automáticos dos fúteis discípulos de antigas lavagens cerebrais, ainda presos no tempo e no espaço pela manipulação genética dos últimos detentores dos quatro poderes.

- "Bob Esponja... Bob Esponja... Hora do Bob Esponja...”.

Enfim, o silêncio contínuo; nenhuma outra fala mais afoita. Talvez conseqüência do cansaço das mesmas discussões; há dois anos, como em toda a história dos conceitos de vida, nenhum ponto de vista aceito por unamidade.

Uma penumbra fantasmagórica começava a recobrir o final da tarde. Vultos de prédios, camuflados pelo efeito da poeira no tempo, ia se apinhando no escuro da noite, formando um só bloco enegrecido. Em algumas janelas, provenientes das telas digitais restantes, cintilavam luzes tênues de repetidos flashs azulados. O negrume começava a cair repentinamente, ofuscando a vermelhidão da tarde no horizonte.

Mais uma noite do inferno em vida! A convivência desgastante de mais um dia chegando aos limites da racionalidade humana, testada a todo instante. Seres antes livres, confinados em um cubículo de sobrevivência. O sentimento de tolerância quase no fim. Minutos de silêncios infernais; silêncio... Silêncio... Silêncio... Olhos cansados do nada; angústia do vazio, falta de ação... A consciência corroendo o ostracismo, levando-os à meditação; buscando resposta para o atual vazio existencial... Dois anos enfurnados à espera de respostas através de uma teia silenciosa de conhecimentos. Apenas a clausura monótona sacudida em todo final de tarde por outra monotonia...

- "Bob Esponja... Bob Esponja... Bob Esponja... Hora do Bob Esponja...”.

Uma voz feminina, vindo do canto esquerdo - ao lado de Absalon -, cortou o silêncio constrangedor:

- Nossa única salvação é o norte, depois do deserto do grande rio. Com sorte, encontraremos lugar para sobreviver fora desta bolha. - Uma rápida olhada nos rostos cansados, esperando uma resposta de corroboração. - Soubemos notícias de que todo o sul está indo para lá; nós também podemos ir...

Nenhum comentário, ninguém responde; ninguém comenta. Silêncio! Silêncio... No fundo do galpão, um pequeno grupo começava a acomodar-se em frente à TV - o último símbolo de uma civilização destroçada pela busca desenfreada do poder através da alienação do povo.

Cinério virou-se repentinamente; contemplou todos com semblante paterno, advindo da sua feição cansada pelo tempo, e falou:

– Escuta, pessoal...! - Uma pausa. O olhar distante buscando inspirações para as palavras; um suspiro fundo. - Fomos convocados a salvar e amarrar este país através da comunicação, criando um mundo de antenas e satélites para difundir nossas opiniões e conceitos sobre um mundo novo; na realidade, criamos uma ditadura virtual apoiada pelo poder da democracia na comunicação. Tudo estava indo como planejamos... Tínhamos uma missão a cumprir. Admitamos: em algum ponto, na nossa evolução de comando, tudo saiu errado... Sarah tem razão! Temos que tentar ressurgir das cinzas... Pelo resto da vida, não podemos ficar confinados dentro do nosso próprio fracasso de ideologia; assim, tornamos-nos vítimas do nosso próprio sistema... E o pior, estamos apenas buscando justificativas para erros sem volta.

- "... Bob Esponja... Bob Esponja... Bob Esponja... Hora do Bob Esponja..."

- Vejam a que ponto chegamos: alienação total, sem limite de idade. Regredimos a uma aldeia local, entre paredes... Sim! Manipulada. Mas continuamos conectados. Dentre todos os males, este é um sinal de esperança. Essa esperança está mais viva do que nunca, ela ainda existe... E vem do norte. Significa que há alguma tecnologia avançada por lá. Podemos reverter o atual quadro do sistema, tentaremos não cometer os mesmos erros, evitaremos o lado político alienado pelo poder, a educação camuflada com interesses comerciais... Pensaremos apenas no futuro de nossas crianças. Menos alienação, mais cultura...

Um olhar à espera de consentimento; nenhuma resposta. O medo do desconhecido estampado em cada rosto. O mundo antes tão pequeno, imerso em um grande vazio de respostas: o que se escondia além das imensas tempestades de areia? Alguém teria sobrevivido após o último ataque terrorista ao ocidente?

- Parece que desta vez estamos sozinhos, amigos...

A eloqüência do desespero quebrando a calma da ociosidade, pensamentos niilistas de encontro às verdades bíblicas tão disputadas entre povos ferrenhos, devastadores em nome da fé: “Eis que eu estou convosco todos os dias, até a consumação dos séculos.”

- Temos que tentar, gente...! - Insistiu Cinério. - Não podemos passar o resto da vida em frente a essa droga de TV à espera de um milagre. Digamos não a essas porcarias de imagem... Somos, sim, novos argonautas de um futuro incerto. Corremos risco, todos sabemos. Mas não vamos atrás de nenhum Velocino de Ouro; buscamos a continuidade da vida, queremos nossa redenção diante dos erros cometidos com a natureza... Temos que encontrar um elo para o futuro, ou estaremos todos perdidos; sem nenhuma razão de existir!

A ansiedade diante de uma tomada de decisão. A expectativa de um último êxodo jamais imaginado: o caminho de volta de muitos, a esperança em uma estrada que antes parecia ser de mão única: a estrada de volta às terras do sertão! A angústia da antiga soberbia diante da inegável atitude de nada poder fazer para evitar tal sina. Agora, não mais a sina dos homens que, cansados de sulcar a terra para sobreviver, rumavam para o sul em busca da sobrevivência. O futuro dependia do que antes fora negado a muitos: A esperança de sobreviver com pouco!

Agora todos sabiam que, longe da senda dos desmandos da busca pela fama e poder, a salvação estava em uma terra que não mais ardia para a subsistência de poucos. Era um ciclo que, finalmente, havia chegado ao fim.

Na bolha, as janelas foram se fechando, esperando o amanhecer!

(Texto em montagem - Livro "A Primeira Profecia "

Kal Angelus
Enviado por Kal Angelus em 25/07/2011
Reeditado em 17/11/2012
Código do texto: T3118358
Classificação de conteúdo: seguro