A Primeira Profecia - O Confronto

O Confronto

Novamente, a discussão parecia que iria se estender noite adentro. Começara, como em outras vezes, através dos seus comentários sobre pontos de vista existenciais e objetivos na vida. Toda vez, ela explodia em discordância, tentando impor seu subjetivismo; opiniões que iam desde sua ferocidade em cumprir sua missão até, se fosse o caso, ao sacrifício por uma causa que, aparentemente, parecia não lhe pertencer.

- A massa só exalta os vencedores, meu amigo... – Fez uma pausa enquanto o olhar consumia seu silêncio de incredulidade na vida.

Enquanto ele esperava a continuidade da sua fala, olhando diretamente para os seus olhos esverdeados, um cansaço repentino abateu seu semblante. Sua vista cansada desceu sobre a terra fedida. Do chão, elevava-se o odor do mofo de um tempo passado, remoto e carregado de histórias e fantasias. Tempo perdido entre rochas, alheio aos anseios e angústias.

Quando ela resolveu continuar, ele já não mais olhava para o seu olhar tentador. Agora, contemplava através da fenda que dava entrada para a gruta, os últimos raios de sol, mapeados em um céu cinzento pela rajada de poeira que se elevava entre os galhos de árvores mortas da caatinga.

- Só os vencedores! – A observação dela saiu em sussurro, ecoando nas paredes rochosas e preenchendo o silêncio instantâneo.

- Vencedores? – Murmurou com ironia, analisando o que sobrou da natureza que agora contemplava.

- Sim, meu caro; só os vencedores! – A mudança de tratamento parecia aumentar seu tom desprezo e descaso para com a sua pessoa.

A repetição parecia um bordão pronto a ter um propósito maior: impor sua condição de superioridade entre eles. A observação bateu em cheio no seu ego cansado de discussões que não os estavam levando a nada.

Seus pensamentos pareciam desafiar a fraqueza do corpo: “Vencedores, perdedores... Qual a diferença entre nós. Estamos no mesmo barco; afundaremos juntos ou nos salvaremos. Doce idiotice da sua parte.” Procurou recompor o raciocínio ante ao efeito do pensamento e contemplou-a demoradamente. Sua feição jovem, contrastando com a aparência de meia-idade, aumentava sua sensação de amargura.

- Mas os verdadeiros vencedores são sempre esquecidos através do tempo, minha amiga... Retrucou. - Buscamos sempre a Era do homem, e estes se renovam como a própria natureza. Só o inexplicável continua perene, esperando a ousadia dos mortais para confrontá-lo com as vontades divinas, e assim desvendar o enigma da vida.

A réplica saiu engasgada, com a certeza da falta de plenitude na concepção do pensamento, sofrido e incompleto. O termo “amigo”, usado por ambos, era um suporte irônico para a convivência quase insuportável; às vezes, surpreendente.

A resposta saiu rápida, sem engasgo e com a voracidade da sua certeza sempre desafiadora. Quase sempre, não lhe dando tempo para recompor os pensamentos. Assim, tudo ia se misturando na sua mente, todos os seus conhecimentos de vida iam se enfiando em um túnel sem saída, afunilando cada vez mais. Sentia um desconforto em saber que tudo que aprendera durante a vida não tinha razão para mudar aquela situação.

- Mas os verdadeiros homens que nortearam a nossa história serão sempre inesquecíveis... - Deu uma pausa e pressentiu sua boca balbuciando; não lhe deu tempo para a próxima palavra:

– Não questiono totalmente teu pensamento, amiga... Mas os heróis não correlacionados com espiritualidade, ou com a força da conquista, nunca tiveram vida longa... Daí a necessidade dos vencedores se renovarem através do tempo. Até mesmo ante aos poderes divinos há a necessidade de novos valores, novos salvadores...

Enquanto o olhar cravava fundo em seus olhos esverdeados, respirou fundo procurando nas memórias de um tempo quase já perdido respaldo para sua justificativa. Sentiu que seu silêncio corroborava com sua agonia, e continuou:

- Reveja o que sobrou da nossa história: os homens mais lembrados são aqueles que se destacaram nas insanas guerras da humanidade; seja para aniquilar ou para salvar o povo da destruição...

Seus argumentos começavam a se misturar, criando uma confusão estranha entre as explicações e a incerteza se ela assimilava ou não seus pensamentos.

- Não em todo lugar... - Ela tentou recompor seu raciocínio, mas ele não lhe deu tempo.

- Em todo lugar, minha cara! Reveja os mitos, a escolástica, a simbologia dos homens para explicar o sobrenatural. Os homens mais lembrados da história da humanidade estão correlacionados com atrocidades; seja para fazer uma guerra ou para acabar com ela. – Tomou coragem e continuou. – A violência do ser humano o faz um herói ou um mostro; nunca houve um meio termo.

- “E os pacificadores, os homens bíblicos com seus milhões de seguidores”? Questionou-se rapidamente antes que ela usasse esta brecha para confrontá-lo.

- Ante as nossas crenças, de tempo em tempo, os deuses se renovam para não perderem o controle sobre nós, pobres mortais...! Cabe a nós o simples agradecimento pela vida. Estamos vivos, estamos bem; somos reféns da putrefação da carne. Ao homem foi dado o conforto do supérfluo; é o único motivo que nos faz esquecer, momentaneamente, nossa mortalidade inevitável. Sempre foi assim, desde que buscávamos explicações nas estrelas, sem fazermos a mínima idéia de que eram e como eram...

- “A beleza e a clareza da servidão... A veneração!” – Ela resmungou sem me olhar.

Acabavam de entrar em um campo perigoso; o campo da espiritualidade, aonde as divergências históricas nunca chegaram a um ponto comum. Ele tentava explicar que, através dos tempos, eles – os deuses - foram perdendo seus espaços. Suas mensagens foram deturpadas. Em nome de divindades diferentes, muitos mataram, muitos morreram... Muitos criaram verdadeiras fortunas. Poucos conseguiram realmente captar e viver, na plenitude, as mensagens de paz. Que a raça humana é, por natureza, irracional: humilha, rouba, fere; consegue sorrir com escárnio da dor do seu semelhante... E, por fim, mata-o sem piedade. Nunca houve um Deus que pacificasse os homens totalmente. O caminho da paz e da sabedoria plena sempre esteve ao alcance de todos, mas a humanidade preferiu continuar nos guetos da imbecilidade... Nunca faltou ensinamento divino, mas faltou assimilação e concordância.

Era a primeira vez que ele conseguia fala sem ser interrompido. Parou por um instante e refletiu: era hora de colocá-la em sua linha de raciocínio.

- Veja sua situação. Por trás de suas ações existe a ideologia de alguém; ideologia que não é sua, mas que a manobra em interesse de causa totalmente alheia a você. Alguém que têm por intenção fazer história através da força e em nome de um Deus raivoso. Um Deus que dá apenas duas opções aos seus filhos: a monotonia eterna de um céu recheado de cantos líricos por todos os lados, ou um inferno, onde as almas degradadas de nossos entes queridos padecerão num fogo eterno.

- O homem não aprendeu a governar seu semelhante; e Deus nos pune. E em quê você acredita, ami...? – O termo “amigo” ainda balbuciou em sua boca. – Em quem você acredita em todo esse seu tempo de vida, em que você depositou suas esperanças terrenas?

- Nos dias de hoje, a questão não é terrena ou celestial, mas de subsistência, minha amiga. – Frisou a palavra amiga enquanto fixava bem em seus olhos. – Houve um tempo em que eu acreditava muito nos homens que demonstravam boa fé; que usavam a razão como princípio de mudança para uma humanidade que se definhava a cada dia. Mas eles passaram a usar as pessoas para seus propósitos pessoais. Os homens recriaram seres humanos capazes de matar sem causa própria; pior que isso: sem causa nenhuma; porque o desconhecimento total pelo qual agimos torna-nos mercenários...

- Está me chamando de mercenária?

Por um instante, Sentiu um vazio de palavras. Seus olhos ficaram distantes, buscando explicação para si mesmo. Deu-lhe vontade de confirmar seus pensamentos. Sim! Ele a considerava uma verdadeira mercenária. Alguém a estava usando para um feito fanático e histórico: destruir o único reduto de salvação para a continuidade da raça humana. Um lugar longe dos conhecimentos da evolução da genética, longe de tecnologias, de máquinas... Simples, porém necessário à continuidade da vida.

Falou calmamente, amenizando suas concepções:

- Não! Não totalmente... Mas de alguma forma alguém a manipula em seu interesse; nunca levamos nossas conversas para este campo... Talvez seja a hora!

Deu uma pausa e, novamente, respirou fundo. Mais uma vez, olhou demoradamente em seus olhos, querendo receber uma resposta afirmativa. Notou seu semblante de desgaste, devido à espera e as suas discussões do dia-a-dia.

- Estou muita cansada para falar sobre isso agora... Quem sabe outro dia; se ainda tivermos tempo.

- Entendo. - Concordou decepcionado.

Dos cantos dos seus lábios carnudos saiu um entremeio de sorriso forçado, quase sem graça. Pedaço do sorriso de uma mulher não mais submissa; distante da concordância de pensamentos contrário aos seus. Ela o olhou em silêncio e deu-lhe as costas. Estavam acostumados a curtas discussões existenciais; era como um jogo para suas sobrevivências, uma espécie de alimento anímico que os mantinham vivos e mais calmos depois de cada embate de verbosidade, muitas vezes inúteis. Desta vez, deixaram uma lacuna a ser preenchida; quem sabe não seria a mudança de rumo nos seus destinos.

Ela se dirigiu para perto da entrada. Durante longos minutos, em silêncio, ficou contemplando o sol que ia se definhando atrás do arco de rocha que dava acesso ao vale. As montanhas rochosas ganhavam mais cor nesta hora do dia: tinham um tom vermelho fogo, e davam um aspecto mais desértico a terra ressequida pela falta de chuva.

Ele reparou, como em todos os dias, em seus cabelos negros, amarrados em forma de rabo de cavalo, tocando abaixo dos ombros. Viu seu corpo atlético realçar em frente às últimas luzes do pôr do sol que entravam pela entrada frontal. Sentiu um frenesi repentino, uma vontade de abraçá-la, tocar na maciez da sua pele. Era a mesma vontade que sentia toda vez que dormia ao seu lado, sem poder tocá-la.

- De que lado você quer ficar; do lado vencedor ou do vencido... ? –

Sua última pergunta ecoou no silêncio, pegando-o de surpresa. Desconcertou-se por um instante, baixou a cabeça e balançou-a repetidas vezes. Tentava encontrar a melhor resposta. Sabia o propósito daquela indagação e, para piorar,suas divergências ideológicas estavam sempre ä flor da pele; principalmente quando passavam a questionar suas ações passadas.

Olhou para seus ombros aveludados pelo bronze do sol; mais uma vez, desenhou seus contornos na mente para não esquecê-la tão cedo; com certeza, daqui a alguns dias iriam se separar. Tinham missões diferentes; nenhum dos dois tinha conhecimento do destino que os reservava.

Agora, sentiu que haviam chegado ao limite das suas discussões e procuraria amenizar o tom de revanche na sua resposta. Sabia que ela não estava tão afoita para continuar nesse embate; e quando agia assim, o restante da noite poderia ser surpreendente, como da última vez em que havíamos discutido.

- A questão aqui não é saber quem é o vencedor nem o vencido. E sim, os pontos de vista entre duas pessoas que não tem mais certeza dos próprios propósitos... Envolvemo-nos além das nossas missões; passamos a fazer parte um do outro...

Tentou captar um olhar de concordância; ela permaneceu fria, distante.

- Neste momento, sabemos da importância dos nossos atos. Estamos convictos de que tudo que estamos fazendo tem propósitos concretos, porém diferenciados. Daqui alguns dias, tudo isso aqui será passado. Não importa agora se fazemos parte de um lado vencedor ou de um lado derrotado... O mundo perdeu! Para o restante humanidade não existe mais heróis...

- Cala a boca, cara... – O grito saiu estridente; sufocado por uma raiva avassaladora. – Você não conhece os propósitos que me fizeram trazê-lo até aqui...

Um silêncio tomou conta do lugar; morria mais uma vez sua esperança em dobrá-la. Suas mãos crispadas foram amenizando sua raiva pouco a pouco. Ele fez menção de retornar o assunto; ela colocou o dedo em riste em direção ao seu rosto e ele entendeu que era hora de passar a ouvi-la.

- Escuta, cara... – O nome amigo, como das outras vezes, fugiu da sua fala. – Nunca te disse e não vou repetir: não sou uma mercenária, como você vive insinuando. Sou parte de uma engrenagem, alheia a comandos de terceiros. Atendemos a presságios divinos. Quero apenas terminar meu serviço. Sei que posso morrer a qualquer momento sem saber o porquê, mas isso não me faz uma mercenária ou uma heroína...

“Presságios divinos.” – Meu semblante ganhou uma feição irônica e procurei não sorrir abertamente.

- Pessoas como eu estiveram presentes em vários momentos de dor na história, momentos decisivos... Em guerra, em naufrágios, em atentados... Estivemos no onze de setembro nos Estados Unidos, em acidente aéreo no seu país...

Sua feição irônica tomava um ar de incredulidade na medida em que ela falava.

- Você não faz a mínima idéia do propósito de quem nos comanda; nem mesmo de nós. Mas pode ter certeza: deve existir uma causa justa para tudo isso. Sempre houve e haverá uma pessoa como eu em algum lugar da história da humanidade.

Um pesado silêncio caiu sobre os dois. Suas palavras iam e viam mente dele. Tudo se misturava! Tudo que ele havia imaginado a seu respeito não fazia mais nenhum sentido.

- “...Onze de setembro, acidente aéreo no Brasil...” – Uma verdadeira algazarra em seus pensamentos. Os fatos se misturando.

O quadro de horror que ele havia pintado fora por água abaixo. Ele a havia associado a algum grupo terrorista, capaz de destruir o único reduto de seres vivos no nordeste do Brasil. Mas, não! Agora nada fazia sentido. Ela se colocava como uma pessoa que estava pronta para ajudar pessoas em perigo de vida.

- “Quem é você menina? Por que me trouxe pra decifrar essas pinturas? - O pensamento acelerado, sem respostas. – “Por que usa a força para conseguir o que quer”?” - Sentiu que era hora de tentar entender o que estava acontecendo; amenizar sua agonia.

- Por favor, escute-me... – Sentiu medo da sua reação. Mas, novamente, o silêncio dela deu-lhe coragem para continuar. - Você pode mudar tudo isso. – Suspirou fundo, procurando as palavras certas. - Basta procurar os meios de travar sua dependência, desvincular sua personalidade da vontade de outras pessoas que a manobram em seus interesses...

“Manobram em seus interesses...” - Repetiu a frase em silêncio e lembrou-se das ampolas de injeção encontradas por acaso. Tratava-se de uma droga de inibição sexual, do século passado, muito usada para conter gravidez de animais. Depois foi sendo usada por grupo terrorista para controlar a gravidez de suas guerrilheiras.

“E suas vontades...!” – Finalizou seu pensamento.

Ela continuou sem se mover. As mãos circundando o corpo, fazendo um enlace fraternal em si mesmo. Sentiu vontade de abraçá-la; senti-la perto de si – dar um fim na sua agonia. A agonia do dilema entre ser dona dos seus atos ou continuar sendo manobrada por pessoas que a usavam para seus interesses. Pouca coisa ele sabia do seu passado, queria contá-la desde o primeiro encontro, mas o clima tenso entre eles não dava oportunidade.

- Eh, você vai demorar a entender tudo isso... - Sua voz ecoou macia, quase triste. - Durma; amanhã teremos que continuar.

Lá fora, um vento frio indicava que a noite caíra de vez.

(Texto em montagem - Livro "A Primeira Profecia"

Kal Angelus
Enviado por Kal Angelus em 25/07/2011
Reeditado em 25/07/2011
Código do texto: T3118513