FUGAS

Ele saiu correndo, gritando, rua abaixo. Parecia uma avalanche destruidora que cai do alto de uma montanha. A rua cheia de pedras era um convite a uma queda no meio do caminho, que certamente traria consequências devastadores. Na rua, ninguém compreendia os motivos que levavam Hector a correr tanto na direção contrária à sua casa. O tempo também não contribuía em nada. O dia havia amanhecido cinzento, com uma névoa espessa e encobrindo o topo das montanhas que emolduram aquele vale onde se localiza o vilarejo de Bela Vista, que faz jus ao nome bucólico. Por volta das nove horas, quando a corrida se fazia frenética, numa espécie de fuga amedrontada, as nuvens cinzentas desciam ao chão em forma de uma chuva fina e constante, fria e acompanhada de um vento gelado.

Hector tinha doze anos. Era um menino bonito, de cabelos bem arrumados, finos, olhos claros contrastando com a tez queimada pelo sol do vale. Era alto e como toda criança acostumada a ajudar o pai no trabalho da roça, magro. Tinha uma gentileza incomum nos meninos da vila. Sempre amável, gostava de cantar no coral da capelinha de Santa Rita, padroeira da comunidade, sempre que havia uma missa. Estava sempre ajudando a professora a carregar os seus grandes pacotes de livros, folhas e cadernos. Todas as tardes estava na lavoura de milho ou no curral ajudando o pai nos afazeres cotidianos. Em casa, ainda havia tempo para ajudar a mãe a secar as louças e panelas, além de cuidar de Victor, o irmãozinho de apenas dois anos e que nestas alturas dava um trabalhão.

Hector era um menino feliz. Com sua bicicleta surrada (era de um tio que se mudou para a capital e a deixou de herança), sempre dava um passeio pelas poucas ruas daquele lugar nos fins de semana. Ana Laura era a grande motivação de seus passeios. Vez por outra, eles cruzavam um olhar diferente daquele costumeiro dentro da sala de aula. Um dia, com um dinheirinho que a mãe lhe deu, tomaram sorvete na praça. Ele parecia um homem. Ana ficava sempre tímida perto de Hector. Ela era belíssima. Tinha longos cabelos negros e uma pele branca como a neve. Seus olhos reluziam como o sol e tinham a beleza de uma lua cheia. Seu sorriso era capaz de hipnotizar qualquer um dos meninos da classe. A gentileza do garoto a havia conquistado. Ela estava, apesar da timidez, interessada nos sorrisos sem graça e nas sempre trêmulas mãos do menino quando dela se aproximava. Ela se divertia com a timidez de Hector.

É claro que os pais dos meninos não iriam permitir um namorinho sequer dos dois. São crianças afinal. Mas não foi esse o motivo que fez o menino sair correndo daquele jeito, naquela manhã de sábado, em disparada para lugar qualquer. A mãe de Hector é uma senhora boníssima. É simpática com todos e cuida da família como quem protege uma arca de tesouro. Todos os dias passa nas camas dos filhos dando um longo beijo de boa noite. Volta-se para seu quarto onde se deita na cama com o marido. Ela é a última a ir dormir. O marido hoje esta, como quase sempre, embriagado. Ele não consegue se livrar do vício. A família toda o ama mesmo assim, mas ultimamente ele tem tido crises de violência e espanca a mulher, que se silencia em si mesmo para manter a família unida. Hector vê tudo e por muitas vezes tentou contornar a situação conversando com o pai.

Naquela manhã de sábado, bem cedinho saíram os dois para a lavoura. Hector já estava cansado das crises do pai e da violência dele contra a mãe. Ela já havia sido espancada um dia antes por defendê-lo. Na lavoura, o pai embriagado não conseguia mais firmar-se no chão com a enxada. Mesmo assim, Hector aproximou-se do pai com carinho para ajudá-lo a se levantar, quando de súbito, o pai lhe desferiu um golpe com o cabo da ferramenta. O golpe doeu mais na alma do menino do que em sua cabeça. Surtou-se. Começou a gritar desesperadamente, um grito-lamento e saiu em disparada. A mãe, ouvindo os gritos do menino tentou em vão seguí-lo. Não conseguia, estava por demais machucada na perna e tinha ainda o pequeno Victor. O pai, desolado ao perceber o que havia feito não pode se desculpar. Ficou caído no meio do milharal. Hector, na sua corrida, apenas olhou em direção à casa de Ana, mas não a viu. Desolado com a partida do filho, o pai bebia compulsivamente, e ainda mais.

Passaram-se os anos. O menino abrigou-se na casa do tio, na capital, que o acolheu e tranquilizou sua mãe. O pai ignorou o paradeiro do filho até que um dia morreu, vítima de sua própria violência contra o corpo. A mãe cuidou de Victor e mudou-se para a capital, levada por Hector que acabara de se formar na faculdade. Ana continuou na vila, sempre apaixonada pelo menino que nunca voltara. Perderam o contato, mas o coração dos dois ainda interligados. Um estava povoando o imaginário do outro.

Tempos depois, um carro entra em Bela Vista e para diante da capelinha de Santa Rita. O homem que desceu do carro trazia uma margarida colhida na capital. Era tal qual as margaridas que haviam no jardim da praça da vila de sua infância. Muitas delas foram entregues para Ana, que as guardava num livro, ressecadas. Ele ruma em direção à casa da menina que povoava seus sonhos, agora uma linda mulher, acreditava ele. Vacilante e trêmulo como sempre, agora homem, engenheiro e bem sucedido, tocou a campainha daquela velha casa. Soubera pela mãe, que Ana perdera os pais num acidente e foi cuidada pela irmã mais velha. Súbito abriu-se a porta, com aquele ranger típico das casas coloniais e das portas de madeira pesada. Um jovem sorridente, loiro, abriu a porta. Hector o reconheceu: era Higor, colega de classe. Ele entrou na casa e chamou pela esposa. Ana chegou logo em seguida com um bebê nos braços. Olhou profundamente para Hector, que não sabia como voltar para casa. A margarida que trazia ficou ali jogada ao chão. Ele apenas teve tempo de perguntar se ela estava bem. Rolou uma lágrima nos olhos de ambos. Ana recolheu a margarida deixada no chão e a colocou no seu livro-jardim. Coração partido, Hector disparou, agora no seu carro, numa corrida desenfreada, gritando dentro de si um grito-desalento, rumo a lugar nenhum. Era sua segunda fuga. Hector vivia de fugas, como todos nós.

LUCAS FERREIRA MG
Enviado por LUCAS FERREIRA MG em 31/07/2011
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