TEMPESTADE - 84

TEMPESTADE – 84

Rangel Alves da Costa*

Pelos cantos do resto daquilo que seria uma casa, com os outros filhos aos cuidados do pai, Gecineide se preocupava especialmente em ter o pequeno profeta Zezeu ao lado. O filho, naquele misterioso dom que ninguém sabia de onde tinha surgido, sabia tudo de momento e destino, o acontecido e o que ia acontecer, e por isso mesmo ela cuidava de estar sempre bem informada através dele.

Então, querendo puxar outros assuntos, perguntou se ia demorar a ter Totinha ali de volta, pois temia pela sua permanência na escola. E Zezeu, como se estivesse chutando a água que passava marrom, carregada de porcarias, falou mansamente:

“Tá acontecendo uma coisa que jamais iria acontecer numa noite normal, principalmente debaixo de um tempo assustador desse jeito. É difícil de acreditar, mas tem passarinho voando pelo ar, tem passarinho saindo do ninho e do esconderijo e voando em desafio ao tempo ruim, e isso é uma coisa muito boa de acontecer. É pelo passarinho que tá voando que Totinha não vai demorar pra voltar pra casa...”.

“Mas num tô entendendo nada Zezeu. Nem urubu se arrisca perder o bico e as penas, muito menos outros passarinhos. Ademais, quem já se viu passarinho voando debaixo de tempestade, com ventania e trovoada? Passarinho que ainda pensa em cantar tá é longe daqui, escondidinho num pé de pau, num ninho ou num buraco. E era aonde devia de tá também se fosse passarinho...”.

“Mas a verdade é que ele tá voando sim, e não é nem por desafio às forças da natureza, mas apenas tentando trazer uma mensagem que não vai demorar muito pra isso tudo passar. Se a senhora quiser pode arranjar um buraco na parede de onde possa ver o tempo lá fora e daqui a uns dois minutos o passarinho vai passar bem ali pertinho da porta dos fundos. Pode ir até lá e depois me diga se ele passou ou não...”.

E a mulher gritou pelo marido que veio apressado. Contou rapidamente sobre a maluquice, a conversa sem pé nem cabeça do menino, e se dirigiram até os fundos da casa, num cantinho perto da porta, e ali ficaram olhando para o alto. No tempo exato indicado pela criança um voejar de asas foi visto cortando os ares. Um pontinho apenas, se movimentando, voando, batendo asas, como se aquela chuvarada nem perto das penugens passasse. E quando o brilho cortante riscava no céu, visivelmente se avistava um voo tranqüilo num pássaro feliz.

Ainda estavam admirados quando o passarinho retornou e numa manobra veloz e inesperada achou uma brecha e entrou cozinha adentro. Gecineide e Julião gritaram de espanto e temor, tentaram a todo custo espantá-lo, porém ele seguiu direto até onde estava Zezeu e levemente pousou na sua cabeça, pulando depois até o seu ombro, direcionando o bico como se estivesse segredando alguma coisa no ouvido da criança.

“Corra daí Zezeu, ninguém sabe se isso é um passarinho de verdade ou outra coisa, um bicho ruim que se aproveitou do tempo pra praticar maldade. Bata nele e corra Zezeu, espante esse bicho”, disse a mãe realmente aflita com aquela inesperada visita. Contudo, o menino segurou a ave na mão, alisou suas penas, acariciou cuidadosamente, falou baixinho alguma coisa e depois levantou com ele por cima dos dedos.

Em pé, seguiu até a porta da frente, abriu-a sem problema algum, sem que as lufadas e a ventania sequer ameaçassem, e se virou para o meio do tempo, para o meio da noite assustadora, e soltou o pequeno visitante. E este alçou voo para outras distâncias, para dar outros avisos, para anunciar as boas novas. Ou para ser mensageiro do ainda desconhecido.

Assim que fechou a porta, Zezeu se deparou com os pais olhando-o, boquiabertos, sem palavras para dizer diante do inusitado. Então foi o próprio menino que resolveu quebrar a expectativa e perguntou à mãe: “É bom voar, mãe?”. Gecineide olhou desconfiada para o esposo Julião enquanto o menino olhava para o alto e ficava mexendo os braços levantados, como se estivesse voando.

Voando em pensamentos também estava a mocinha Inácia, caminhando de um lado a outro, agoniada, dizendo coisas, ora raivosas ora em tom de brincadeira, à velha senhora morta. Desde que ouviu a falecida falar resolveu não mais ficar silenciosa e quieta pelos cantos, com medo de que a voz, agora de um jeito muito diferente, começasse a se pronunciar.

Na sua cabeça, instigando a defunta faria com que ficasse quietinha no seu lugar, pois tinha certeza que a voz só tinha surgido porque ela estava descuidada, não estava atenta ao corpo enrolado em panos, em cima do sofá. Por isso mesmo dizia:

“Por que não fala de novo e diz logo de uma vez por todas qual é a surpresa que vou ter? Abra a boca e fale, diga logo qual é a sua surpresa. Depois do que aconteceu aqui dentro dessa casa depois da tempestade, tenho certeza que não vou me surpreender com mais nada nessa vida, nem com coisa de vivo nem de morto. Se não fosse Betinho, quando a senhora fosse enterrada eu ia sair daqui que nem olhava nem pra trás. Agora não sei nem como vai ser do coitado do menino pra sobreviver. Tão rico que ficou e sem ter nada, e simplesmente porque a senhora morreu deixando tudo escondido. É isso que dá ser fona demais, canguinha, mão fechada, ruim até dizer chega. Aí ô, morreu rica, mas onde tá essa rica toda, senão em banco? Se eu soubesse que por aqui tinha algum guardado ia mandar o menino pegar e me pagar o dinheiro do mês, mas nem isso eu sei. Pelo que eu tô vendo vou ter de sair com uma mão na frente e outra atrás mesmo, mais pobre ainda do que cheguei. E agora fale alguma coisa, diga alguma coisa, tenha raiva porque lhe chamei de velha fona, tenha, tenha, tenha...”.

E num momento de desespero, completamente transtornada, se dirigiu até onde estava a falecida Querência e puxou-lhe a coberta. Pela luz fraquinha da lamparina deixada num canto da sala, viu que ela estava sorrindo, como uma morta feliz. E viu também um envelope estranho saindo de um bolso que mantinha escondido pelo lado de dentro da enorme saia que vestia.

continua...

Poeta e cronista

e-mail: rangel_adv1@hotmail.com

blograngel-sertao.blogspot.com