Passional.

Os passos eram apressados. A rua estava calma e com pouco movimento. Os semáforos abriam, fechavam. A névoa da madrugada a tornava inquietante e, ao mesmo tempo, tranqüila para todos, menos para ele que sentia uma dor atordoante na nuca e caminhava alucinado temendo que algo ainda pior viesse a acontecer. Artista plástico, próximo aos trinta anos e casado há pouco mais de dois.

Na véspera do casamento, em plena comemoração, por mero acaso, alguém lhe mostrou um jornal vespertino que destacava a previsão astrológica daquele dia. Entre outras banalidades, o horóscopo previa que as pessoas nascidas em sua casa astral poderiam vir a sofrer sucessivas mudanças causadas pela passagem do planeta Saturno que iniciava, ali, um novo ciclo astral, fato esse, que só se repetiria nos próximos vinte e oito anos, tempo que o velho “sisudo” consome para completar sua órbita solar. Entre os folguedos refletiu: Comigo vai mudar, vou me casar!... e mudou.

Sua esposa, jovem professora primária, mesmo como substituta em início de carreira, por ser aguerrida, sempre conquistava algumas aulas. Econômica, administrava de forma rigorosa os seus ganhos; embora jovem, se orgulhava de ter o nome limpo na praça. Desapreciava os amigos do marido, achava-os exagerados porque viviam se agarrando e usavam roupas fora de moda; em contraposição, não ficava alheia às inúmeras cantadas de adolescentes, até mesmo de superiores, nos estabelecimentos em que se propunha a lecionar. Em suma, tinha noção exata da vida pública que levavam e sabia negociar ambas as partes.

No primeiro ano de casados tudo correu bem. Gozavam de um bom diálogo, apaixonados, se dispunham a abrir mão do que fosse necessário em nome de um perfeito convívio familiar; além disso, tinham em mãos um trunfo fundamental para eles e algo raro entre casais: carisma avassalador e uma química sexual ardente. Foram noites e noites de intenso prazer...

As vendas dos quadros eram irregulares, mas aconteciam. Embora o ambiente de trabalho de um não seduzisse totalmente o outro, se entendiam. Mas, como nada na vida é perfeito, após a comemoração do primeiro ano de casados, a paz doméstica mostrou cansaço. O empenho diário com sua obra o deixava inquieto, algo lhe faltava. Casa, comida, companheira exemplar não eram suficientes. Fatos sérios tendiam acontecer. Viveram os primeiros choques de opinião. Quem sabe se a presença de um filho não trouxesse um novo ânimo para aquela relação?...

Seu ateliê ficava a alguns quarteirões de sua casa. Era um cômodo, com banheiro, no quintal de um amigo. O tempo voava. Se surgia uma inspiração, adentrava a noite. A não presença da mulher era ignorada. Ele sentia que precisava criar, sua memória fotográfica tudo registrava. Os fatos aconteciam de uma maneira espantosa e a intuição lhe dizia que o momento era aquele! Os pincéis deslizavam seguros, as cores se distribuíam de forma singular. Telas e mais telas eram produzidas, mas sua bela esposa começava a cobrar sua presença. O excesso de trabalho mental era desgastante. Exigia que exercícios fossem feitos para compensar a estagnação dos músculos, mas, todos os dias, eram as mesmas coisas: curta caminhada, lanches rápidos, refrigerantes e muita pintura; só a noite retornava para casa. Houve vezes em que, quando da sua chegada, sua mulher disfarçadamente chorava. Numa delas, já de madrugada, quando adentrou ao quarto, sua companheira adormecia; vestia o melhor de seus trajes e tinha a maquilagem borrada nos cantos dos olhos. Na cabeceira, dois ingressos para “Trair e Coçar”, peça que ela, desde a adolescência sonhava em assistir e, justamente naquela noite, haviam combinados de ir ao teatro de sua cidade. Junto com os ingressos, havia também um convite e um regulamento para a seleção de uma importante exposição que se realizaria na capital. Ao vê-la deitada, a sedução da roupa noturna o fez recordar que há dias não a procurava sexualmente. Mal lembrava dos contornos de seu corpo, de seus pontos eróticos; não se tratava de falta de desejo, mas, porque se encontrava envolvido em tantas atividades, o desejo físico - tão valorizado na adolescência -, aos primeiros sinais de rotina foram legados ao segundo plano. Com os cabelos em desalinho, barba por fazer, exausto, banhou-se e adormeceu no sofá temendo despertá-la. Na manhã seguinte, acordou com dores lombares e foi ao quarto, mas ela não estava; restavam sobre a mesa o café e alguns biscoitos. Só mais tarde, ocorreu-lhe de que ela tinha ido amanhecer no portão de entrada de um shopping em busca de vagas temporárias em lojas de confecções; era fim de ano e as aulas esporádicas só viriam em março...

A alta demanda do trabalho exigia mais material, principalmente molduras, muitas delas, e variadas. Elaborar um quadro para a seleção da capital carecia de pesquisa crítica devida às exigências impostas aos participantes. Criatividade, forma de expressão, material e técnica utilizada, tudo pesaria na escolha daquele destacado evento. Confuso, decidiu ir para a casa mais cedo, descansar. Já passavam das oito horas quando saiu à rua. Periferia, locais obscuros povoados por bêbados, drogados; prostitutas mirins que se ofereciam a seus prováveis clientes e homossexuais que disputavam a avenida. De repente, como por um estalo, entrou transe. Aquele ambiente sugeria um quadro de comoção social. Sem titubear voltou ao estúdio. Duas da manhã, o título: Trevas - Exibia de forma obscura, um beco, mariposas, libélulas, besouros, lixo em campo minado e, tendo ao fundo a explosão de uma bomba atômica.

De novo na rua. Já é madrugada; residências adormecidas, o véu da noite camufla os gemidos dos guetos miseráveis. Instintivamente apalpa o bolso e constata ali seus documentos e o cartão magnético. Sem pestanejar, corre até um caixa eletrônico, confere o saldo... É possível adquirir boa parte do que necessita; nem se lembrou de consultar a mulher, ela era tão correta com os negócios... Empolgado, deixa a cabine, mas um trinta e oito se impõe entre seus olhos. Atônito, atende ao marginal impiedoso que, mesmo levando todos os seus pertences, ainda desfere uma coronhada em sua nuca. Perto do amanhecer volta a si. Relembrando o ocorrido e sentindo a dor latejante na cabeça, fica sem destino. Como chegar em casa naquele estado?... Acaba tomando o caminho do estúdio. Antes, porém, vai até o orelhão e disca. O outro lado, a voz sonolenta do vigia de um magazine atende e anota a relação de materiais. Sentindo-se num contexto infernal nota que, apesar de tudo, o dia já vai raiando. Contemplando as pessoas que retomam sua rotina, algo lhe ilumina a mente e ele segue apressado. Eis o momento em que corre, naquela manhã cinzenta, por aquela rua, ainda pouco movimentada, com os cansativos faróis que abrem e fecham; apavorado e ferido, adentra ao ateliê.

MANHÃ URBANA - Vê-se anotado no rodapé da tela que mostra pessoas feridas, algumas crivadas de espadas sobre uma tempestade de sangue. Adormece..

O cubículo está aquecido. Barulho de pessoas se movimentando, pacotes de materiais sendo descarregados, ignora.

Mais tarde, novos ruídos lhe irrompem pelos tímpanos e uma mão feminina fere-lhe o rosto, é sua esposa. O ódio a deixou possessa e golpeando seu corpo, vomita palavrões. Irada, enumera tantos casos, fatos corriqueiros que foram se avolumando. Como resultado, vê-se aquela jovem em estado de pânico. Ela rosna, arranha-se; rasga papéis timbrados, outros com código de barras e os joga ao chão. Por fim, descontrolada, ela vai embora.

Acuado, ele respira fundo e se comove. A luta contra os obstáculos diários trouxe o inferno àquela criatura tão querida. De nada adiantaram as explicações sobre o assalto, a necessidades das telas, as visões obsessivas que lhe ocorrem; no fundo ela tinha razão. Nós últimos dias havia sido ausente a tudo, a omissão nas suas obrigações de homem e amigo, tornara seu casamento um equívoco. Se apenas namorassem, seria diferente. A batalha de cada um afastou os amigos leais, confidentes, fazendo deles inimigos. A solidão realçava as qualidades daquela sonhadora que guardava suas moedas num porquinho de porcelana e se orgulhava em anunciar que seu cofre estava repleto. As boas lembranças o encheram de revolta e, dando vazão ao lado agressivo, lembrou do povo árabe, homens rancorosos que vivem rebelados e santificando meia dúzia de líderes carniceiros que se promovem mundialmente massacrando os vizinhos em nome de Alá. Seu corpo é envolvido por um torpor, as mãos vão à tela. Horas depois, lê-se: SACRIFÍCIO - Um caldeirão humano fervilha ao redor do Sinai, o fogo é ateado por Reis de vida farta, alimentados por senhores do Norte que são, como aqueles, também ávidos de promoção mundial. A mente corroída vacila, cenas reais se emergem: vida miserável, onde pouco se ganha e tudo se perde. Não terá mais a amiga de todas as horas, a incentivadora que o ajudava a vencer o cansaço, as incertezas. Sendo artista, vez por outras tendia a se perder em idéias abstratas; ela, por ser de caráter normal e ter os pés no chão o retia na sobriedade. A professora primária, amiga das bruxas e dos duendes que encantava as crianças da periferia: negrinhos, desdentados, os meninos revoltados que adoravam brincar com a tia que cantava canções e batia palmas. Novo transe o invade. Quase dez horas da noite, óleo sobre tela: DOCE INFÂNCIA. Num cenário rústico, curupiras, curumins, boitatás, pererês, palhacinhos e bruxas rodeiam a doce Fada Madrinha. Coberto por uma toalha, um trabalho esboçado, mas já iniciado há dias, SEM TÍTULO; mostra o congresso e a câmara dos deputados, vazios. Três da manhã, aves de rapina e chacais tomam aquelas casas de leis. Exausto, adormece debruçado no cavalete.

No início, era uma luz fraca, mas pouco a pouco foi se tornando clara e deixando visível o quarto onde ele se encontra. Há, entre os pincéis e as tintas, uma travessa contendo porção de macarrão com frango a passarinho, salada e um copo de suco. O amigo que lhe concedeu o ateliê não o abandonou. Com apetite voraz, consome o alimento enquanto tenta se lembrar dos últimos acontecimentos. No chão, pedaço de um envelope com o logotipo de um espaço cultural, contas de água e luz por vencer. Na ânsia de achar seu convite, cata os pedaços, partes de um quebra-cabeça daquele que seria um regulamento. Não foi necessário procurar mais; nas migalhas justapostas era visível uma data... Desolado, deixou-os cair das mãos. Com olhar distante, aproveitou aquele momento de reflexão para emoldurar as telas secas. Sobraram três delas ainda virgens. Rapidamente volta aos pincéis. As horas voam. De madrugada, lê–se numa delas: Revolução. Milhares de favelados, peões de obras e desvalidos voam como nuvens de gafanhotos e devoravam a metrópole. Na segunda: NOVO MILÊNIO-, da janela de uma estação orbital, com o uso de poderosas lentes, nota-se que a terra está povoada por soldados robôs que marcham com a bandeira da OTAN e pisoteiam dois terços do planeta. Na terceira: ADVERSIDADE - em fundo branco, apenas tracejado, um jovem casal, unido pelas mãos, tenta caminhar em direções opostas.

A alvorada vai raiando. Um mendigo luta com o portão e não consegue abri-lo. Uma senhora de moletom e cabelos eriçados aparece e, entre lágrimas, informa-lhe que sua esposa não mora mais ali. Ainda na tarde anterior, venderá os móveis a qualquer preço e dizendo ir quitar débitos pendentes, partiu sem destino. Deixando de ouvir o fim do relato, aquele maltrapilho também partiu. Entre o segundo e o terceiro quarteirão finda a rua e a luz é só uma penumbra. Do nada surge um grupo de meninos que o despe com violência e desaparece tão depressa quanto apareceu. Nu e com frio, cai de joelho no asfalto gelado. As poucas forças que lhe restam, permitem-lhe vislumbrar a figura de uma mulher que, tendo os cabelos em desalinho, usando uma camisola transparente e um cobertor nos ombros vem por sobre ele que tomba com o rosto apoiado pelas mãos. Não podendo reagir, sente que aquela figura feminina, agora perfumada, o envolve. Primeiro com as mãos, depois com o corpo e, por fim, pousa os lábios generosos em sua nuca impondo calor onde reinava o desconforto da chaga. A lembrança dos bons momentos o faz emitir um soluçar entrecortado. Inesperadamente ela se move e um foco de luz se instala perto de seu rosto. Misteriosamente, o asfalto vai se transformando num lençol macio, as forças retornam e ele se volta......é ela!!! A professora primária desempregada, a amiga dos duendes, dos curumins, dos “pererês”....Embora confuso, começa a entender o que sucedera e a abraça com todas as forças.

Mais tarde, a luz branda que ilumina o ambiente, retrata nada mais do que a simplicidade e o aconchego de seus aposentos. Que assombroso pesadelo! Ainda, perturbado pelos acontecimentos, deixa se envolver pelas palavras reconfortantes, pela calorosa presença de sua melhor amiga, e relaxa. Tem agora todo o tempo do mundo para narrar-lhe as suas desventuras, falar de suas esperanças e envolver-lhe com todo o seu imenso amor.

Mapa Cultural Paulista - FASE REGIONAL - Franco da Rocha - S.P.

Menção Honrosa concedida pelo DARC na modalidade conto.