fiz uma viagem
De cabeça meio mole penso coisas e tento me lembrar de que agora estou numa fazenda, a Esperança, e aqui vou pra passar o final de semana.
  Casa bonita, toda, toda de madeira roliça, rústica, estrutura simples e planejada à Zanine. Junto passa um rio com pedras em seu leito e faz rumorejar d’água. Casa situada entre muitas árvores, quase uma floresta. Passarinhos bagunçados assobiam.
  Ao lado, um terreno com restos de demolição, tudo organizado. Por que esse terreno, esse entulho?, pergunto. É o local da próxima construção. A cada sete anos desconstruímos a casa (a última ficou erguida de 95 até ano passado, 2002) então construímos uma outra com vida renovada que a substitui — essa aí onde você está pousado. Dessa maneira os funcionários carpinteiros — artesãos —, pedreiros e arquitetos contratados têm possibilidade de sempre exercerem suas habilidades, de ensinar na prática aos novos funcionários, aos aprendizes. Nós mostramos também, dessa maneira, que nada é permanente e até mesmo as construções de aparência sólida estão num processo constante de reconstrução. Estamos limpando tudo, esse “entulho”, devagar, sem tanta pressa, onde reconstruiremos, também devagarinho, construiremos uma outra vida aqui, melhor aqui e acolá. Nesse tempo plantamos flores no terreno. E uma grande horta orgânica. Começaremos a semear mês que vem. Se você quiser, vem nos ajudar..., Fabiano convida.
  ... nada é permanente..., é, sei que nada é eterno, ... devagarinho, construiremos uma outra vida aqui, melhor aqui e acolá. É, em tudo tendemos a melhorar aqui e ali, são os aprendizados... Este homem simples e de fala mansa diz da vida, usa a imagem da construção e reconstrução de uma casa... surpreende, faz pensar que isso é que é saber usar uma metáfora em cima dessa concretude abrutada! Não sei se a figura de linguagem é do Fabiano, o encarregado, ou de outro alguém. Não sei, não importa! Vivo o dia a dia, e dia a dia quando numa situação boa, quando vejo que ela tem em si momentos de instabilidade — em tudo há esses instantes —, tento eternizar o agradável no sentimento, não vislumbro o seu possível fracasso, a desilusão daquela situação vir a terminar. Acho bonito o que Fabiano diz, anoto no meu bloco pra não perder a ideia nem a forma do que dissera. Mas “sete anos”... sete anos por quê? Na sua linguagem, não consigo pescar tudo. Ruminando o que ouvira, estou encantado e feliz de existir aquele lugar, essa pessoa.
  Deito à beira do rio, olho a água cristalina que se renova continuamente: o que estou tentando percorrer por trilhas são meus sonhos, e a reconstrução de minha paz. 
  Tenho de me comprometer com ela utilizando um caminho, não trilhas que escamoteiam e engabelam. Ir por trilhas e me absorver sem repor é tempo perdido. Perdido nas dúvidas das encruzilhadas, abuso da desculpa ainda não é bem isso o que eu queria... Embrião de meus fracassos. Assumir, mesmo dando passos incertos; refazer o percurso, mesmo sabendo que posso melhor. Aceitar as possibilidades do presente — o futuro, o vir a ser virá.

  Fabiano conta que certa vez a fazenda estava naquela época dos sete anos, a última, quando ergueram a casa onde estou hospedado, e que o proprietário viajou deixando tudo com os funcionários. Chegou depois de alguns meses e nada foi feito. Eles tinham contratado estudos de projetos pra nova construção, mas nada, nada havia começado. Perguntaram ao proprietário qual dos projetos devemos executar? Que fazer? O proprietário aproveitando o mote, à Lênin diz: “... a cooperação e o auxílio afetivo só poderão amparar os movimentos”, e torna a viajar. Sem medo de errar, decidiram conjuntamente e o resultado é a casa que conheço, tão agradável, e nela me aconchego.
  Perambulo faz três dias. Tomo banho de rio e de mata, me banho de sol e de lua; tem vez ladeio pessoas que trabalham na Esperança, e vou, vou almoçar em suas casas e saboreio com delícia vinho feito ali mesmo. Não uso cachaça — levei uma garrafa e não tenho vontade de beber dela.
  Não conheço o tal proprietário, viajara. Com sua filha Eneida, tão interessante — que beleza negra! —, com sua quietude estou encantado; encantado com a simplicidade de Fabiano, a visão social e humana; Ana, simpatia, faz comida saborosa (o patê e o próprio escargot que levei de minha criação, ela serve duma maneira tão agradável); estou encantado com o Arnaldo e a Berenice, funcionários da fazenda, seus filhos Liane e Pedro... Estou tão encantado com todos e tudo.
  Não levando câmera fotográfica, com a sua Eneida fez diversas fotos de mim no rio, andando pela beira d’água a cavalo, prosando com funcionários... Sinto pena d’eu não fazer nenhuma imagem daqui, de todos, sua.
  Dias de sol; noites frescas e céu enluarado refletido no rio alumia as conversas rodeadas um fogo... Com sede, bebemos da lua cheia. Temperatura boa. Que lugar — ambiência tranquila, sossego da paz.
  Eneida... ah, Eneida. Nome lindo — soa gracioso. Nome da minha vó que nem não conheci; a Mãe conheceu se tanto um tantinho, somente até seus doze anos.
  Saudade.
  Fiz uma viagem.
 
Germino da Terra
Enviado por Germino da Terra em 13/08/2011
Reeditado em 13/08/2012
Código do texto: T3157761
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