Luxo (agosto de 2011)

Papel colorido, laços cor-de-rosa e muitos bombons sobre a mesa da cozinha. Bombons de morango, abacaxi, nozes, cupuaçu. Todos caseiros. Com os laços da embalagem na mão, estava Clarissa. Separava meticulosamente os bombons de morango dos bombons de outras frutas, enquanto contava as unidades, ao mesmo tempo. “Trinta e dois, Trinta e três...”.

E não havia chegado a contar nem a metade dos bombons. “Cinquenta e cinco, cinquenta e seis...” E vamos desembalar a terceira caixa de bombons caseiros, recheado de frutas, cobertos do mais fino chocolate ao leite. “sessenta e um, sessenta e dois...” Mais laços cor-de-rosa, e a terceira caixa de bombons, organizados sobre a mesa de acordo com o sabor.

Clarissa era chocólatra, o que quer dizer que era viciada em chocolates. Uma boa parte de seu salário de faxineira era gasto com seus chocolates recheados de frutas. Era um problema que não podia contornar, uma vez que não conseguia livrar-se do vício. Por conta disso, esse mês teria dificuldades para pagar até o aluguel, o que passava a preocupa-la muito.

Mas, voltava suas atenções ao chocolate: “quarta caixa de chocolates... são oitenta e um, oitenta e dois...” Essa já era a última caixa de chocolates que comprara. Debruçada na beira da mesa da cozinha, Clarissa juntava os laços de fita e as caixas dos bombons de um lado e os doces todos de outro lado.

Uma imensa chocolateira de vidro estava em cima da pia da cozinha, destino de todos os chocolates que Clarissa retirava das caixas sobre a mesa. Ainda que grande a quantidade de doces, eram o bastante para uma semana. De fato, alguns chocolates nem esperavam pelo repouso na chocolateira, pois Clarissa os devorava assim que saíam de suas caixas.

De repente, um ruído metálico quebrou o silêncio de Clarissa. Era a campainha. Levantou-se com dificuldade (já que estava imersa no meio de uma grande quantidade de laços cor-de-rosa, caixas, papel e chocolates), e foi em direção à porta. Meteu então o olho no olho mágico e, logo, passou a tremer de calafrios ao ver, do outro lado, Cristina.

Cristina era a proprietária do apartamento onde morava Clarissa. Era ela quem, pessoalmente, coletava o aluguel do imóvel, sem tardar em todo dia 7 de cada mês. “Estamos ainda no dia 2 do mês de fevereiro”, pensou Clarisse e, controlando a tremedeira, pôde então abrir a porta para Cristina, que por sua vez não se perdeu em rodeios, indo diretamente para a cozinha.

“Bom dia minha bomboneteira de plantão”, disse e prosseguiu ainda Cristina, “pelo que vejo, não perdeu o hábito de cuidar dos docinhos”. E disse ainda, “o que espero é que não vai ser por expressão de um luxo costumeiro que vai atrasar novamente o pagamento do aluguel deste mês”. “E quantos docinhos, Clarissa...” Pegou Cristina um bombom de nozes e comeu.

“Vejo que você, Clarissa, tem ainda que encher a bombonière.” Disse Cristina. Ao que, franzindo o cenho desconfiado, redarguiu-lhe Clarisse: “Eeeu... não tenho isso que você está falando não. Essa é uma bomboneteira (ou chocolateira), lindíssima que eu comprei” e, inteirou, “quanto ao aluguel, pode contar que está tudo certo para o dia sete.”.

Clarissa mentiu para Cristina, pois, de fato, não fazia ideia de como conseguir manejar o rombo dos chocolates no orçamento em tão poucos dias por vir. Estava envergonhada, mas manteve a firmeza. Talvez pedisse emprestado para o ex-marido, talvez encontrasse outra pessoa para aquinhoá-la o dinheiro do aluguel ali mesmo na vizinhança. Não sabia ainda ao certo.

A enorme chocolateira de Clarissa não comportaria as quatro caixas de chocolate que comprara. Uma parte teria que ir direto para a geladeira. Ainda assim, era surpreendente ver aquela enorme peça de vidro em formato de um abacaxi gigante. Sim, a “bombonière” era um abacaxi descomunal: a tampa, no formato da coroa e, o vidro, era lindamente todo trabalhado.

Em boa hora, Cristina seguiu até a porta aberta da sala do apartamento de Clarissa. Despediu-se com dois beijinhos e deu-lhe uma piscadela cúmplice. Ficava combinado, como sempre, que estaria ali, de volta, no dia do vencimento do aluguel, no próximo dia sete. Clarissa tremia as pernas, mas procurava mostrar um semblante confiante. Pagaria o aluguel no dia combinado.

Em cima da mesa, quatro caixas de bombons abertas, laços cor-de-rosa, e bombons de todos os formatos: alguns grandes e redondos, outros macilentos e quadrados, e também bombons em formato de estrela. Jogados ao chão, papéis de embalagem formavam um monte disforme, juntos desordenadamente com todo o lixo da cozinha.

Terminando de encher sua “bombonière”, Clarice alocou o restante de seus bombons na geladeira. Varreu todo o chão da cozinha e passou detergente com água nas cadeiras e mesa. Abriu a pequena janela atrás do fogão, recolheu todo o despojo e deitou-o fora em um saco de lixo, colocado atrás da porta junto com as quatro caixas de bombons.

Pensou alto Clarissa, “Sozinha... ufa... enfim...” e desabou no sofá da pequena sala do apartamento, “e agora?” Refletiu. Contou até dez, respirou fundo, levantou-se e deu dez pulinhos no pequeno cômodo. Ensaiou gritar, mas se conteve. Tentava lembrar-se de todo artifício que a fizesse acalmar-se: “haveria, sim, gritar, mas... melhor não.” E sentou-se no sofá.

Tombando um pouco para o lado no sofá, pôde alcançar a escrivaninha onde guardava a agenda de telefones. Teria que encontrar o telefone de Jorge, seu ex-marido, ou alguém mais que pudesse valer-lhe no desespero. Percorreu demoradamente as páginas (os números telefônicos não estavam em ordem alfabética), mas logo encontrou o número de Jorge.

Tombou para o outro lado do sofá, para alcançar o aparelho de telefone, e o dispôs então no colo, apertado entre o ventre e uma pequena almofadinha do sofá: “Alô, Jorge?” exclamou Clarissa, “Pode me emprestar dinheiro para o aluguel, Jorge?” ao que Jorge redarguiu, “Não vai ser dessa vez, desculpe-me neguinha.” Encerrou furiosa Clarissa, “Não faz mal, adeus.”.

Haveria ainda Carmen, Adélia, Lucíola, Lúcia e Maria Clara. “Mas,... não.” Afirmou Clarissa. Nenhuma delas seria capaz de ajuda-la com o aluguel ou, ainda que pudessem ajudar, melhor seria não recorrer a elas. Também poderia pedir ajuda em um adiantamento com o patrão, bom tentar, mas difícil também conseguir. “E agora, por todos os deuses, o que vou fazer?”

Leo Marques
Enviado por Leo Marques em 17/08/2011
Reeditado em 26/06/2012
Código do texto: T3165861
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