DOS PERFUMES DE DEZEMBRO A PAPAI NOEL
 
          A entrada de dezembro prenunciava um verão muito quente naquele ano. O temporal de sábado à tarde provocara a queda das peras amadurecidas precocemente e era preciso que se iniciasse o aproveitamento das frutas caídas, ou seja, estava dada a largada para a temporada de fabricação de doces, que iria terminar apenas em fevereiro com a última colheita de uvas e pêssegos.
            Enquanto Zefa preparava a fogueira no local mais descampado do pátio, minhas irmãs e eu descascávamos as peras, separando a polpa que teria dois destinos: em pedaços, descontados os caroços, parte seria cozida em calda de açúcar e armazenada em vidros com tampas emborrachadas para se transformar em “compotas”; a outra parte seria triturada na máquina de moer carne e cozida nos tachos de cobre para produzir a schmier, própria para ser consumida no pão caseiro, acompanhada da nata recolhida do leite in natura que o leiteiro nos entregava diariamente. As cascas das peras sofreriam demorado cozimento no fogão a lenha e renderiam deliciosa geléia, também a ser consumida com pão e nata caseiros.
     Alguém menos avisado e que olhasse a cena poderia imaginar sofrimento no trabalho árduo e demorado de preparação das frutas e cozimento nos tachos de cobre, que se estendiam por todo o dia. Mas estaria enganado, porque esses dias eram de desprendida felicidade e prazer, onde até mesmo as ordens de cumprimento de tarefas eram dadas com uma certa doçura, mal disfarçada pela aparentemente severa expressão facial de Zefa e de minha mãe.
     Esses tempos de felicidade eram reforçados pelo início das férias escolares de minhas irmãs e a perspectiva da chegada do Natal. Aí, então, era hora de se acender o forno a lenha e cozinhar as coloridas bolachas natalinas, cujo sabor era único e durava somente até a véspera do Natal. Por muitos anos tentei comer essas bolachas em outras épocas, mas a experiência foi decepcionante. Por alguma razão (segundo minha avó, seria obra dos duendes natalinos) as bolachas mudam de sabor se consumidas depois do Natal ou mesmo antes de dezembro. Com o tempo acostumei-me a essa verdade e hoje só como bolachas natalinas nas duas semanas que antecedem o Natal.
     Além das eventuais ventanias de verão, do perfume dos jasmins e das borboletas multicoloridas, havia mais alguma coisa no ar naqueles dezembros. As forças do Bem e do Mal ficavam tão atiçadas quanto nos dias sombrios e tenebrosos dos invernos. Era fácil identificar os dois contendores: de um lado o Papai Noel bondoso, gordo, de barba branca, que viria na véspera do dia de Natal trazer o sonho e a alegria materializados em brinquedos que sequer se ousava imaginar para não estragar a surpresa. De outro lado havia o Crisquinte, um ser semelhante ao Anti-Cristo, que passara o ano vigiando nossas atitudes e chegaria para aplicar as penalidades adequadas a cada delito cometido. Eu não ousava andar por lugares escuros nessa época, pois o encontro com ele era de alto risco e a carga de culpas a expiar estava sempre estampada em meus olhos. Escapar ileso de um encontro com ele até a noite de véspera de Natal era uma tarefa à qual eu me dedicava com fervoroso afinco. Aliviava-me sentir o cheiro de incenso em minhas roupas após as novenas que freqüentava diariamente ao entardecer, por todos os quinze dias que antecediam o Natal. Roupa impregnada de incenso mantinha o Crisquinte afastado, pelo menos até a manhã do dia seguinte. Na verdade, devo admitir, não sem falsa modéstia, que minhas técnicas foram sempre muito eficientes, pois, contrariando o testemunho de muitos amigos, jamais tive qualquer encontro pessoal com o Crisquinte. Somente anos mais tarde, quando já de posse do raciocínio dos adultos, vim a compreender porque minhas estratégias nunca tinham falhado: o Crisquinte não existe como ser individualizado, ele é apenas o lado obscuro e punitivo de Papai Noel. A ele cabe o julgamento e aplicação das penas pelos desvios cometidos pelas crianças ao longo do ano, liberando Papai Noel para ser somente esse ser bondoso e paciente que todos conhecemos.