O CUBO

Acordou. Antes mesmo de abrir os olhos, somente de sentir-se acordado, já lhe batia descompassadamente o coração, como se o despertar fosse um susto que a vida lhe pregava.

Escutou. Nenhum som estranho, a não ser os comuns a uma noite de sono. A mulher ressonava e a criança mexendo-se sobre o plástico que forrava o berço, parecia rebuscar papéis. Estava inquieta. Devia ser o calor.

O quarto tão pequeno, as paredes manchadas de umidade, o ambiente sufocante. Não podia abrir o vitrôzinho para entrar um pouco de ar; se abrisse, entraria muito pernilongo. O jeito era deixar fechado, com aquele pedaço de pano de colcha velha, cheio de flores coloridas e de mau gosto, amarrado em dois pregos, a disfarçar a claridade que vinha da rua. Agüentar o calor, era a única saída. O suor escorria de sua testa. Limpava com as mãos, enxugava na coberta e continuava suando. Ficou olhando um momento aquelas flores do pano.

(Para que serviriam? Pensou. Enfeitar uma cama? Que palhaçada! Pôr flores para simular felicidade!).

Há muito não sabia o que era ser feliz nas intimidades com a mulher. Era só mesmice, monotonia, rotina, problemas, angústias. Ternura? Onde?

Procurou controlar-se, mas o coração disparado fazia a respiração ofegante e o ar saia e entrava em seu corpo como uma chaleira silvando. Tinha medo de acordar a mulher e a criança.

Tentou lembrar-se porque estava tão aflito...

Lembrou-se: na véspera, a sogra estava muito doente, muito mal, o cunhado calado e acusador, a velha avó num canto, mais acusadora em seu silêncio do que muitas palavras. O que tinha feito? A mulher só sabia balançar a cabeça, num gesto reticente. Não sabia se o estava acusando ou se apenas admitia a sua impotência diante da situação.

E a miséria de tudo a lhe rodar na mente... Também não podia ajudar muito, ou nada. O que tinha feito? O que faltava fazer?

Vivia ali porque a mulher era da casa, era filha, irmã, neta; ele tinha que aceitar a ajuda, a acolhida, pois não conseguia trabalhar direito, atordoado pelos pensamentos obscuros.

Sabia que estava doente, sentia-se doente, um pesadelo acordado. Parecia um cubo a chocalhar em seu cérebro. Parecia, não, era um cubo. Um cubo vivo, sabido, que cada vez que rolava, deixava ver na face que ficava pra cima o que acontecia, o que pensava. Acusava-o, não o deixava descansar nunca. Dia e noite ele estava presente. Só não o via quando dormia. Às vezes achava o cubo muito parecido com seu pai. Sempre tinha alguma coisa para recriminar.

- Você é muito lerdo, muito devagar. Nem parece meu filho. Olha só pra mim. Sempre trabalhei, nunca faltou nada pra família. A gente é simples, mas honrado. Você só fica pensando em coisas que não levam a nada. É curso disso, daquilo e emprego mesmo que é bom, nada. Vê se firma em alguma coisa. Pare de sonhar tanto!

Não se lembrava direito quando começara a ver, ou sentir, o cubo em sua cabeça. Podia ter sido depois que um colega comentou que seu pai era “quadrado”, mas tão “quadrado”, que até parecia um cubo! Ou, então, foi por causa do apelido que lhe deram – “quadradão”. Será que era por isso?

Tinha conhecido sua mulher no bairro onde morava. Aquele namoro meio chocho, quase que imposto pelos comentários das coleguinhas e dos amigos.

- Vai lá, ela gosta de você, é bonitinha.

- Você é quadrado, meu! Não enxerga que a mina te dá bola? Quadradão!

Foi quase que por imposição, para não fazer feio. Sempre fora assim, acabava fazendo a vontade dos outros. Seria por comodismo ou falta de iniciativa, como dizia seu pai? A mãe tinha medo.

- Cuidado, menino, não vai fazer uma besteira, viu? Olha que ela é moça de família.

Era de família, mas bem que gostava de ficar se encostando a ele, provocando, deixando entrever que queria mais que aquelas carícias bobas que ele lhe dava. E pra não fazer feio junto a ela, aos estímulos das coleguinhas e dos amigos, caiu na armadilha e pronto - ela ficou grávida. E agora? Sem emprego fixo, sem recurso algum, ter que enfrentar a família dela e a sua própria!

Foi muito difícil passar aquela situação. Era um quadradão, mesmo. Não sabia ser esperto.

-Quadradão, quadrado...

Tentava imaginar por qual razão o relacionavam com um quadrado, não conseguia entender. O cubo devia ser produto do apelido. Depois pensaria mais naquilo.

Começou a ter dor de cabeça todo dia, suava frio, tinha tremores, não conseguia dormir direito e quando comia, era só o suficiente para passar a fome. O cubo lhe dizia:

- Seu covarde, frouxo, quadrado, não lhe disse que tomasse tento? Você me envergonha!

Não era o cubo, era seu pai.

- Agora vai ter que casar e logo, antes que a vizinhança fale mal. Dizia o pai (ou o cubo, já nem sabia mais).

E casou no cartório, Cerimônia boba, todo mundo fingindo felicidade, tudo amiguinho! A noiva segurava flores. Pra quê? Que mania de flores tem esse povo!

O pai, bravo, chegou com um endereço para que fosse fazer uma entrevista. Era para vender livros diversos. Coleções disso e daquilo, livrinhos de estórias. Começou a trabalhar.

Até que no princípio ganhava algum. Alugou um quarto-banheiro; a criança nasceu. Um menino esquálido, branquelo como a mãe. Em casa (aquilo era uma casa?!), ficava sentado num banquinho na porta. A mulher lá dentro com a criança. Não tinha jeito para fazer nada.

Nesses dias de mesmice, quando não havia algum transtorno, o cubo ficava quieto, sem girar; um lado, a mulher; outro, a criança; o terceiro, ele; num dos lados apareciam os livros e os outros dois ou eram coloridos ou até brancos. Conseguia viver com isso. Para o pai, ele continuaria sempre a ser um joão-ninguém. Para os amigos, um quadradão. Para a mulher, não sabia. A vida era tão sem graça! Seu pai não quis ajudá-lo em nada, envergonhava-se com a sua incompetência.

Depois de poucos meses, já não conseguiu pagar o aluguel do quarto-banheiro. E, afinal, lá estavam eles três, a mulher, a criança e ele, na casa da sogra. Sustentavam-lhe, partilhavam sua comida e com isso sentia-se exatamente o inútil que tantas vezes seu pai tinha dito, mas não conseguia soerguer-se porque o cubo continuava a rodopiar.

E nesse silêncio o complexo de culpa de sua inutilidade fazia-o entrever acusações, fazia-o ver olhares enviesados, gestos de enfado e aborrecimento. Estavam todos cansados e cansaço desse fardo extra na família. Já viviam bem apertados. A sogra passava roupa para famílias e o cunhado trabalhava no mercadinho do bairro. Todos ganhavam pouco e ainda sustentavam a velha avó semi-inválida.

(Porque não morre logo essa mulher?).

Era isso, então, o pavor que lhe disparava o coração. Tinha desejado a morte da sogra! O cubo mostrou.

A sogra tinha passado mal no emprego e, no postinho do bairro, o médico diagnosticou pressão alta. Repouso, alimentação adequada e tomar direitinho o remédio.

De que jeito? Deixar a roupa e não ganhar o dinheiro da semana? Que alimentação, se era difícil já o simples arroz com feijão! E o remédio, então? Não podia parar de tomar, dissera o médico. A primeira caixa só duraria cinco dias. Do postinho voltara à casa da família para acabar de passar a roupa e mal dera conta do serviço. À noite a sogra piorara; será que alguém dissera que podia até morrer logo, que não duraria muitas horas? Quem dissera isso? Ou era imaginação porque desejava sua morte?

Ninguém tinha dito nada, foi o cubo mesmo. Ele sabia de tudo. Era ele que lhe mostrava sua inutilidade, seus pensamentos de raiva e impotência. Era ele que mandava fazer isso ou aquilo. É. Era o cubo. Foi ele que mostrou seu pensamento maldoso!

O cunhado, a mulher e a avó não o acusavam diretamente, mas a sogra, com aqueles suspiros contínuos era um dedo em sua direção.

(Ela sabe do cubo, a danada, por isso fica me olhando...olhando... Porque não morre logo essa mulher? Não, não posso pensar assim. Devo me arrepender e me redimir, como manda a oração. Preciso me arrepender. Como era mesmo aquela reza para o arrependimento que a irmã freira me ensinou? Não, não foi a irmã freira; estas palavras que me vêem ao pensamento são do pastor daquela outra igreja. E este som, de onde vem? É do cubo? Não, é do batuque do terreiro! Disseram que levasse uma vela para durar uma semana. Iam arrumar emprego fixo, carteira assinada. Afinal, não conseguiram me arrumar emprego. Deve ser porque a vela não era muito grande!

Mas, afinal, a quem pertenço eu? Embaralha-me todos os rituais e sermões e ladainhas; então, não tenho apelação, se ela morre é por culpa minha! Desejei sua morte! E o Deus do perdão já não me ouve porque conheci vários caminhos e não segui nenhum... )

Abre os olhos de novo, sente percorrer um calafrio por seu corpo magro. Precisa fugir para não ver. Se ela morre, ele terá que morrer! Quem com ferro fere...

A roupa, onde está a roupa? Tem que procurar no escuro. Se acender a lâmpada a mulher acorda, a criança vai chorar, todos vão saber que foi sua culpa!

(Ah! Aqui está.)

Sente mais do que vê, na meia escuridão da madrugada. Devagar. Agora. Qualquer estalido acelera mais as batidas do peito. Parece que retumbam dentro do corpo magro, fazendo eco no côncavo do abdômen. Aqui estão os óculos e a pasta.

(Preciso levar a pasta, poderei dizer que estou trabalhando; posso até fingir e bater em alguma porta (-Quer ver as últimas coleções, senhora?).)

Mas é pecado mentir também.

Pronto. Já está vestido e calçado. Abre lentamente a porta do quarto.

(Ainda bem que a fechadura está quebrada e é só puxar devagarzinho...)

Atravessa a sala. O velho, puído, e muitas vezes lavado, tapete de sisal abafa seus passos. Ainda bem. Consegue desviar da mesinha de centro com aquele vaso horroroso e suas flores de plástico.

(Não sei por que pôr flor em tudo, fingindo uma primavera que não existe, mascarando vida saudável que jamais terá! Pra que tanta flor? Só se for para o enterro da velha. E pra que flor em enterro?).

(Concentre-se, homem).

Agora o maior objetivo é conseguir chegar à porta da rua.

(Não posso esquecer, preciso puxar o trinco para que a chave gire livre e não dê aquele ruído seco que acorda a minha mulher.)

Põe a pasta entre as pernas, segura o trinco com uma mão e gira a chave com a outra.

(Consegui!)

A aragem da madrugada lhe bate no rosto. Não olhou para o outro quarto, nem repassou os olhos pela sala, pois tem medo de ver o que não quer!

Agora é só andar, fugir e fingir. Logo será dia e no bairro pobre, muitos o conhecem e vão querer saber da sogra!

- Melhorou? Pobre dela, tão boa para você, não?

Não. Quando for claro, já estará longe; se ao menos tivesse dinheiro para o ônibus. Quem sabe se disser que esqueceu a carteira... É pecado mentir. Se for pecado mentir, quanto mais desejar a morte dela! E se ela já morreu?

A taquicardia acentua e agoniado leva a mão ao peito por dentro da camisa com tal sofreguidão que alguns botões já mal presos se despregam. Abaixa e cata pelo chão o que caiu.

(É agora, meu coração vai arrebentar e daqui a pouco o sangue vai sair pela boca e os que passam vão me acudir e dizer):

- Coitado, está morrendo, tão moço!

(Quem sabe se eu apertar bem forte não arrebenta.)

- Desculpe, moço.

- Heim? Ah! Não foi nada.

O empurrão fizera cair a pasta e os óculos lhe ficaram atravessados no rosto, mas isso só serviu para ver que não saía sangue da boca. O cubo, contudo, voltou a rolar mais rápido. Um lado, a mulher, o outro, a criança, de lá, a velha, de cá, o cunhado e em todos eles, a sogra.

(Será que morreu?)

Dói-lhe a boca do estômago e isso lhe provoca náuseas. Acende um toco de cigarro que o cunhado tinha deixado no cinzeiro; isso serve para tapear a fome; o cigarro sabe amargo porque é muito forte (mas é de graça). Que miséria a sua vida... Buscara muito, caminhara muito, mas ninguém mais parecia querer comprar livros; e nessa luta foi-se afundando. Cada dia menos do pouco que já tinha.

(Quatro! Quatro lados tem um cubo, mais dois lados em branco! A girar, a rolar. Ai, como minha cabeça tá doída!)

- Ele está doente da cabeça, vai parar no sanatório.

(Quem disse isso? A mulher? A sogra? O cunhado? Ainda bem que já saí de lá!)

Calmo, sempre calado, nunca dissera uma palavra sobre o cubo para ninguém; só que agora achava que a sogra sabia do cubo. No princípio foi-lhe fácil viver com ele. De um lado só tinha livros, do outro a mulher e a criança e os que restavam eram brancos ou coloridos. Chegava a se distrair imaginando de que cores seriam no outro dia!

Uma pontada. Aperta mais o peito. Já não tira a mão porque lhe parece sustentar a vida com aquele gesto. Se tirar, a velha morre e ele também! Nem o sol que há muito esquentou lhe clareia a mente. Para ele ainda é escuro e...

(Preciso ir mais longe onde não me conheçam e não perguntem por ela.)

Já passou muitas esquinas, casas, calçadas, ruas, gente, mas continua a caminhar até que as pernas já não agüentam mais a pressa e se recusam a levá-lo, chumbadas, doloridas. (E se eu sentasse na calçada? Não, não posso. O que os outros vão dizer? Vão parar e perguntar e é capaz do guarda ver o cubo olhando de cima.).

Esbarra numa lata de lixo, derruba tudo, restos de comida, latas, caixas vazias, brinquedo quebrado, porcariada... Sai depressa capengando...

Como explicar que foi o cansaço que o fez desejar a morte dela? Cansaço dos olhares, gestos, suspiros... De ver sua mulher limpando o que não fica limpo, do mesmo quartinho abafado cheirando a mofo, das flores da colcha, das fraldas usadas e rotas da criança, daquele narizinho escorrendo sempre...

- Coitadinha, está sempre resfriada, fungando.

Cansaço da sogra, do cunhado, da velha avó.

A sogra! Deve estar na sala, esticada, branca; se tocar, já deve estar gelada. Devia ter olhado. Não, morreria ali mesmo e todos iam saber! (Foi ele, quem com ferro fere...).

Corra que o cubo gira muito depressa e pode parar. Se for o lado dela pra cima, é porque morreu! Se não for, é ele quem morrerá.

- Essa rua eu conheço. Mora aqui perto um homem que eu conheço, um médico, comprou livros. De que foi mesmo? Ah! De psicologia, só pra ajudar, que precisar não precisava.

- Boa tarde, que deseja?

- Queria falar com o doutor.

- O doutor, só às sete. Foi ao hospital... Um caso urgente... Uma recaída... Pode esperar, se quiser...

Não, não pode esperar. Se parar, o cubo pára. Do lado de cima, a sogra morre. Caminha, entra num bar, toma água. Dói o estômago. Está suado, esgotado. Mas precisa caminhar.

- Hei moço, esqueceu o paletó no banco.

(Que importa? Lá dentro só tem uns endereços. Se eu voltar para trás o cubo para de lado; é o lado da minha mulher... Ela morre? Não, só o de cima vale.)

Volta, pega o paletó, tem tempo. O médico chega às sete.

- Que horas são, moço?

- Seis e meia.

Dar voltas no quarteirão, assim o cubo continua e não pára. A criança, a sogra, o cunhado, a velha, a mulher e ele...

(Seis lados, não esqueci nenhum.)

A criança, a sogra...

(Ai, que pontada.)

O cunhado, a velha, a mulher e... A criança, a sogra, o cunhado... A criança... No relógio do bar faltam cinco para as sete...

E aí, moça, o doutor já chegou?

- Já, sim senhor. Já falei do senhor pra ele. Pode entrar. Por aqui, por favor.

- Como vai? Mais livros? Agora não quero. O que? Um cubo? Espere... Do princípio... Calma... Dá-se um jeito... Relaxe... Sente-se... Não, não morre... Com a ajuda de Deus... Desabafe... Isso... Chorar ajuda... Vamos... Dá-se um jeito... Enfermeira, um copo d’água... Isso... Tome este comprimido... Beba devagar... Tenho tempo... Onde mora? Posso levá-lo... O carro aí fora... Eu levo você... Venha... Não, não é incômodo algum... Tenho um tempinho livre... Tudo bem... Vamos...

Rodar... Girar... Rolar... Rodar... Rodar... Não mais o cubo... As rodas rodando...

- Pronto, desça.

- O que foi, onde você estava? Mãe ajuda aqui.

- Veja. Sua sogra não morreu, viu? Ela melhorou. Não é nada. Dá-se um jeito...

- Coitado! O dia todo... Sem comer... Meu filho, onde esteve? ... A gente ‘tava preocupada... É, gostamos dele... É bom... Só está um pouco nervoso... Tratando, sara. Como? Neuro, o que? Ah! Precisa se tratar. Vamos ver... Quem sabe no postinho tem médico disso... Como é mesmo? Pisquiata. Já sei. Amanhã vou lá... Sim, é meu marido... Obrigado, doutor... Té logo... Obrigado mesmo, viu?... Desculpe o incômodo... Fica tranqüilo, dou o comprimido pra ele depois... Té logo...

- Deita, o doutor disse que deu um comprimido que vai fazer você descansar. Vai dormir. Nossa, nem vi você sair. Precisava disso tudo? Você tem cada uma! Amanhã vamos ao postinho. Tomara que tenha aquele médico que o doutor falou...

(... Amanhã eu vou ao postinho, quem sabe alguém me ajuda a acabar com este cubo... Ou é meu pai?... Não sei...)

Amanhã... Amanhã... Amanhã... Dormir... Devagar... De leve... Sentindo renascer uma esperança verde... Lisa... Sem formas de cubo ou de pai... E sem flores também... Sumindo... Sumindo... Sumindo...

A mulher não entendeu por que ele tinha um cubo de brinquedo apertado em sua mão...

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Rachel dos Santos Dias
Enviado por Rachel dos Santos Dias em 03/09/2011
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