POR TRÁS DAQUELE OLHAR

A estrada corre silenciosa e aborrecida pela janela embaçada do ônibus e a sensação de quem feito eu, ora cochila, ora acorda, é como se estivesse flutuando nas trevas de uma madrugada de nanquim, embalado pelos amortecedores hidráulicos do veículo. A longa viagem faz com que eu transpire amiúde, ainda que esteja um frio intenso lá fora. Aqui dentro, Morfeu derrama seu feitiço sobre quase todos os passageiros. Acendo a parca luz do meu relógio de pulso e constato que são três horas mais um quarto. Tem tempo... Com um lenço que tiro do bolso, esfrego uma nesga de vidro para admirar o tênue comboio da noite esvaindo-se gota a gota na garganta do horizonte. Mato escuro, misterioso, sítio de caiporas, curupiras, homens-coruja, cuja ira só se aplaca com fumo de corda ou aguardente de canela misturada com sassafrás. De quando em quando, sente-se a carícia de golpes surdos nas laterais do ônibus como se algum ente fabuloso, através de suaves dedos de capim, desejasse arrancar algum passageiro de seu sono letárgico para devorá-lo no ventre rotundo da escuridão. Inutilmente, as estrelas piscam para mim numa débil tentativa de seduzir-me com olhares gelados e lascivos. Tento sem resultado reclinar mais um pouco a poltrona que já está no último estágio e fico escutando o ronco grosso do motor com seu peito de urso labrador a consumir a estrada de pó e cascalho. É madrugada de um ano qualquer que o século não lembrará, anjos tremem de frio sob o poncho das nuvens nevadas e eu sigo solitário de volta para minha cidade natal com o peito farpado de saudade e solidão.

Subitamente, vejo que manchei o vidro de vermelho. Batom de cereja. Ana Mariana só me beijava com boca de cereja e o último beijo que ela me dera no dia de nossa despedida eu tinha guardado naquele lenço de cambraia. Havia mais de um ano que eu partira para estudar na capital e desde então não mais a vira. A última recordação de Ana Mariana que me vem à mente é dela na rodoviária acenando seus adeuses tristes entre soluços melancólicos num entardecer laranja emoldurado por um sol vermelho-carmim como nunca mais vi outro igual. O sol deitava mansamente por detrás dela e por isso eu só conseguia ver os traços diáfanos de sua silhueta misturando-se à paisagem daquele janeiro promissor. Quis gritar pela janela do ônibus que eu a amava demais, que pensaria nela em cada minuto de minha ausência e que muito em breve eu voltaria para nos casarmos, mas só conseguia me lembrar de nossa conversa gelada na véspera e por isso calei no peito meus rompantes impulsos de romantismo:

- Você vai me esquecer na cidade... vai arranjar outra, talvez nem volte...

- Não, Ana, eu volto. Juro que volto e jamais vou olhar para outra mulher porque eu te amo, Ana. Jura que vai esperar por mim?

- Juro...

Por isso eu voltava para casa extasiado de júbilo. Tinha decidido pedir Ana Mariana em casamento e, após um ano tendo de minha amada apenas o conforto de suas cartas perfumadas, de sua letra adolescente que eu beijava sofregamente em minha noites ardentes de insônia e de suas lágrimas que eu descobria pingadas sobre o papel acetinado, calei a ela este meu desejo, pois era minha vontade fazer-lhe a surpresa pessoalmente. Ah, seria como num romance de capa e espada. Os olhos de Ana Mariana se iluminariam de estrelas, ela pediria que eu repetisse a frase uma, cem, mil milhões de vezes para poder degustá-la em toda sua essência. Depois me beijaria como nunca tinha me beijado, com lábios de esposa enluarada, e ficaríamos o resto da tarde arrumando nosso futuro, a rir de pequenas coisas que nos parecia tão simples e tão puras.

O ônibus encostou num posto para reabastecer e o motorista veio nos avisar que tornaríamos a partir em meia hora. Uma lanchonete aberta servia os caminhoneiros da madrugada e eu resolvi descer para caminhar um pouco, pois minhas pernas já começavam a doer mais que o de costume. Havia um vento gelado que assobiava no sereno da mataria e vinha rastelar o rosto das pessoas como se quisesse nos recitar mágoas de solidão. A estrada comprida e calada, mar de utopias ecléticas, cumpria sua missão cartesiana de unir o destino dos seres. O braço do homem a plantou ali e ali ela permanecerá até que não tenha mais utilidade nem serventia. Pois assim reza a lei que nos legaram. Um dia virá a picareta, virá a enxada, virá a pá e deitarão tudo isso abaixo. E construirão outra estrada para ligar nada a coisa nenhuma. E isso parecerá bom aos homens.

Mas eu empurrei a porta de vidro da lanchonete e todas minhas convicções filosóficas sobre a relatividade dos acontecimentos dessa vida desabaram sobre mim. Ao fundo, uma rádio fora de sintonia tocava a moda sertaneja do João-de-barro numa viola ponteada de soluços escarlates. Fragrâncias de solidão. Uma moça com um avental encardido de úmido e lenço amarrado nos cabelos enxaguava o chão de cerâmica. Além dela, apenas um velho se encontrava sentado num banco de canto. Estava vestido com um terno puído pelos anos de uso e possuía uma grande mala de viagem. Ao me ver entrando, levantou-se com alguma dificuldade de onde estava e veio me perguntar:

- O senhor viu meu filho?

- Lamento, respondi, mas não sou daqui.

O homem esfregou os olhos estrábicos de um azul cansado, sem resquícios de alma, roçou a branca barba de três dias com a costa de uma das mãos caludas e palmilhou trôpego de volta para o seu banco sem mais nada dizer. Nem precisava. Era a própria figura da solidão corporificada dentro daquele terno preto.

As impressões auditivas sempre me marcaram mais do que qualquer outra. Toda vida achei que eu tinha ouvido de poeta, mas nunca me arriscara na aventura de talhar versos. Por isso ali, naquele instante, um poema havia se perdido para sempre. A plangente canção do João-de-barro, doída de tudo, a moça triste lavando o chão sem fim de uma lanchonete num posto de estrada, um velho amoitado em sua dor, cingido pelos tentáculos da solidão, tudo isso me pareceu matéria-prima de uma melancolia sublime nas mãos de um verdadeiro carpinteiro da palavra.

- Por favor, você poderia me trazer um copo de leite com chocolate?

A moça interrompeu seu trabalho e veio lavar as mãos na pia detrás do balcão. Tirou o lenço da cabeça e seus copiosos cabelos de amazona esparramaram-se por cima dos ombros delicados e femininos. Não era bela, mas possuía um jardim de crisântemos cevado na candidez estranha do olhar, singelamente embebido por uma casta amargura. Era como se ela já tivesse aprendido a se resignar com os cascos gangrenados do destino e nada mais podíamos adivinhar sobre as cicatrizes de sua vida. Um lago silencioso. Um lago profundo.

- Temos leite, mas o chocolate acabou. Posso servir com café?

- Tudo bem.

A moça girou uma pequena torneira de onde escorreu leite grosso, encorpado de nata e espuma. Depois tirou uma cafeteira que fumava em cima do fogão e a entornou sobre o copo até completá-lo.

- Açúcar?

- Obrigado.

Gosto de café amargo, mas aceitei o açucareiro para poder roçar de leve os seus dedos rústicos e observar a reação daqueles olhos enigmáticos de esfinge. Ela esboçou um quase sorriso de mocinha sonhadora e foi lavar copos para dissimular seus sentimentos. Juro que me senti mal, pois era como se eu vestisse minhas calças curtas de menino travesso e deitasse a lançar pedras numa lagoa proibida, apenas para desvendar os mistérios insondáveis das circunferências concêntricas. Das circunstâncias excêntricas.

Um relógio pendurado numa viga marcava quinze minutos para as quatro. Daqui a pouco, o ônibus comeria estrada e em breve eu estaria desfrutando os braços carentes e cálidos de minha ditosa amada. O velho de terno levantou-se novamente e veio com seu passo tímido de passarinho machucado até o balcão. Misturei uma colher de açúcar ao leite e o aroma de casarão colonial do café inundou-me às narinas:

- Moça, tem mesmo certeza que a senhora não viu meu filho?

A moça mordeu os lábios e, por um instante, parou de enxugar os copos. Não se conteve mais, levou o pano à boca, seus olhos incharam em brasa e ela começou a chorar convulsivamente. Tinham lhe entalhado cravos por todo o coração.

O velho voltou humilhado para seu canto de morte. Seu canto de morte... Trazia os olhos injetados e mais estrábicos agora. Contudo, ainda havia um fiapo de luz a lucilar franzino na alma do pobre. Era a essa ínvia chama de santelmo que ele se agarrava, ele, nau sem rumo, privado de astrolábios e rosa-dos-ventos aos caprichos de um oceano proceloso. Essa pequena chama era o grão de esperança que ainda brilhava à procura do filho.

Quanto a mim, aproveitei a oportunidade para exercitar galhardamente meus dotes cavalheirescos. Não foi sem um certo prazer concupiscente de macho que amparei a moça em meus braços e a conduzi até uma mesa, onde ela pudesse se acalmar:

- Quer um copo d’água com açúcar?

- Não, obrigada... desculpe, desculpe... é que eu não tenho mais ninguém no mundo...

- Se quiser, pode desabafar comigo, minha querida.

Minha querida! Há quanto tempo eu não usava esta expressão de afeto, que eu guardava exclusivamente para Ana Mariana. Há um mistério ancestral nas palavras que ninguém pode explicar, nem Homero que ensinou aos homens como manejá-las com arte, nem Bernartz de Ventadorn que não inventou o amor, mas inventou a poesia de amor. O certo é que aquela palavra de intimidade estilhaçou a barreira de gelo que existia entre nós e, inesperadamente, a lagoa se fez cristalina. A moça pôs na mesa as cartas lancinantes de sua vida.

Drama só. Há três dias estava noiva e prometida em casamento, mas o namorado fizera a delicadeza de fugir com a própria irmã dela. Ao contrário do velho senhor de terno, não havia esperança alguma plantada em seus olhos enferrujados. Uma estrada de ferro estalando ao sol e que não levava mais a lugar nenhum. Enquanto descartava sua vida, eu percebi que ela olhava com insistência e pena para o senhor de terno, até que me disse:

- Pobre infeliz! Aí está há três dias sem comer e sem dormir à espera do filho, que não voltará. Às vezes, o sono o vence e ele adormece sentado no banco, mas logo acorda esperançoso quando ouve o roncar de algum carro na estrada para, em seguida, decepcionar-se novamente. Pobre homem, o filho não voltará.

E acrescentando com lágrimas amargas a turvar-lhe os olhos:

- O filho dele era meu noivo.

Tenho de dizer que por um instante perdi a voz e a esperança. Havia um certo requinte de crueldade que somente os cérebros propensos às mais sórdidas perversidades como os de Heliogábalo e Torquemada poderiam engendrar. As engrenagens do destino são azeitadas com sangue. Ali na minha frente havia uma mulher jovem sem mais nenhuma esperança na vida. Atrás de mim, num banco vazio, um velho com seu terno preto esperava pelo filho que não mais tornaria a ver. Ele e seu olhar solitário, ela e seu olhar oco. Lá fora, a estrada me chamava para viver minha pequenina e idílica felicidade. E a solidão inundando o chão de cerâmica da lanchonete. E a solidão vertendo pelas paredes e devorando tudo que sua mandíbula de rapina pudesse devorar. O velho e a moça, trespassados pela dor comum, eles próprios transformados na essência da solidão.

Ela calou um instante, depois enxugou novamente os olhos átonos e concluiu dolorosamente:

- Mas o que me magoa mesmo é que ele fugiu com minha irmã, Ana Mariana.

Houve um silêncio crítico por parte de nós dois e foi quando ouvi o ônibus ligando o motor. O motorista buzinou para chamar os passageiros que ainda não haviam retornado e eu corri para a porta sem me despedir da moça triste, do velho triste, eu mesmo agora mais triste do que a própria tristeza. Subi no ônibus e me escondi na poltrona, porque eu sentia uma vontade imensa de chorar e tinha vergonha de minhas lágrimas mudas. Uma dúvida terrível se aninhara em meu peito e estraçalhara meu coração em milhares de cacos. Lá fora, a estrada me chamava para viver minha pequenina e idílica felicidade. Minha pequenina e idílica felicidade...

José Martino
Enviado por José Martino em 16/12/2006
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