Menino de Recado

Não gosto de fazer as vontades dela, tudo é do jeito que ela quer. Me manda

Fazer mandado, não tem outra vida, me manda comprar fiado, me manda buscar coisa...O que, menino, que você está falando? Nada, vó, estava cantando. Cantando... eu sei viu, vai ali, comprar um pacote de corante e anda logo, porque seu pai vem hoje pro almoço, e você sabe que ele só vem na carreira. Quando eu voltar eu posso brincar na rua de baixo? Vai logo, menino besta . Quando chegar a gente conversa. Não trás açafrão não, viu, aquilo deixa a comida encardida....

No caminho até a venda de Seu Mário lima, eu ia zangado, mas depois passava, é que aos poucos eu ia me distraindo pelas coisas que via pelo caminho. Subia até o final, pela calcada da escola. Da igreja atravessava a rua, perto do posto de gasolina eu descia. Logo que chegava, eu era sempre bem atendido, puxavam meu saco. Meu pai concertava a luz dele de graça e dizia sempre assim: Dê um abraço no seu pai. Eu nunca dava. Não tenho vontade de abraçar, porque que vou dar um recado desse? Nem sabia como dizer . Ainda bem que logo eu esquecia.

O corante era à granel, três colheres. Ele enrolava bonito, começava fazendo dobrinhas em baixo no papel e ia subindo, no final parecia uma meia lua. Me entregava com um sorriso. Gostava de ir até lá, pelo menos saia de casa e dependo do horário, dava pra conhecer melhor a cidade, sem minha vó saber. Ela tinha muito medo de eu me perder. Pra ela, eu conhecia só o caminho até a venda. Nem sabia que ando pela cidade inteira quando vou fazer um recado.

Quando chegava, vinha com outro mandado: Vai na casa de Tia Maria e pede uma lasca de lenha emprestada. Trazia a merda da lasca de lenha. A Tia Maria gordona sentada na porta da rua, parecia uma vaca fofa com sono. Eu dava o recado, nem olhava na minha cara, uma falta de vontade. “Entra no fundo, perto do forno, pega uma e leva”. Velha miserável , nem sei porque obedecia minha vó. Eu nem agradecia, de tanta raiva que dava. Quando ia lá em casa, enchia o rabo de biscoito de goma, repetia e lambia minha vó, que contava pra ela todos os segredos da gente. Na casa dela, tratava a gente assim.

Chegando, eu jogava a lenha no canto com muita brabeza. Fazia barulho, estourava o som pela casa inteira. Ligava a televisão. Quando estava começando a me divertir: “Menino, vem cá, está na hora de buscar a lavagem”. Porra de bicho nojento! Meu pai trouxe uns porcos da fazenda como pagamento de um concerto elétrico e agora eu tenho de buscar essa merda. Andar toda a Rua do Fogo, com uma lata de comida estragada na cabeça, casca de banana, casca de mandioca, feijão velho e azedo, fedendo. Andando no meio da rua pra ninguém sentir aquele cheiro . Pelo menos lá, na casa de dona Zelita, posso conversar um pouco com Elaine de Bilude, que ta ficando muito é da bonita, pena que sou novo perto dela, mas já da pra sentir umas coisas. Adoro quando ela abre a porta com aquela carinha de inocente. “Já veio buscar a lavagem? Acho que só tem um pouquinho...”. Ficava no portão esperando. Ela voltava com o balde fedendo. Era bom ver aquela diferença. Toda cheirosinha e o balde imundo em suas mãos. Pegava todo sem jeito. E dizia querendo ser simpático: “Na semana que vem eu volto”, ela ria. Eu me contentava só com aquilo. Na rua brilhante de quente, o balde sujo e asqueroso, mas mesmo assim, eu não conseguia tirar o sorriso da boca. Já esperando, bem ansioso, pra chegar novamente o dia de buscar lavagem.

No caminho de volta eu começava a gostar dos porcos e comecei a ter medo

De meu pai vender logo eles. Pois eu passei a gostar muito desse dia, que é quando saia tudo de ruim e só ficava na minha cabeça o jeito de Elaine, que era grande, mas eu olhava mesmo assim.

Quando chegava em casa, nem sabia se teria mais mandado, nem estava me importando. Tomava meu banho e jantava. Ia pra calçada esperar os meninos chegar. Porque a noite era toda minha, muitas brincadeiras. Ficava na rua até minha vó gritar. “Vem dormir diabo, vem logo lavar os pés pra dormir”. “ Se não vier logo, vou chamar seu pai”

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